Os obstáculos do Mercado Único Europeu a uma transição climática justa

Poucos têm consciência de como as empresas, com a sua obsessão de “completar” o Mercado Único, têm usado as regras deste para obstruir políticas que possam prejudicar os seus lucros.

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Este ano celebra-se o 30.º aniversário da criação do Mercado Único Europeu. Este afecta quase todas as facetas da vida quotidiana dos europeus, incluindo conquistas importantes, tais como a possibilidade de viajar sem fronteiras dentro da União Europeia. No entanto, poucos têm consciência de como as empresas e os seus grupos de pressão, com a sua obsessão de "completar" o Mercado Único, têm usado as regras deste para obstruir políticas e regulamentações sociais e ambientais progressistas que possam prejudicar os seus lucros.

As queixas das empresas contra políticas legítimas (que envolvem pressionar a Comissão Europeia a abrir processos por "infracções" às regras do Mercado Único) são um tipo de lobbying que passa quase totalmente despercebido. E, no entanto, constituem um instrumento poderoso para que os agentes do sector possam visar silenciosamente a legislação que lhes desagrada relativa aos Estados-membros.

E, agora, estes grupos de pressão estão empenhados numa tentativa bem-sucedida de fazer com que estas regras — que já tendem a dar prioridade aos interesses empresariais em detrimento de outras preocupações de interesse público — lhes sejam ainda mais favoráveis. Em vez de proteger o espaço democrático das autoridades públicas, a UE está a ir na direcção oposta.

Já com demasiada frequência, as regras rotuladas como "obstáculos" ao Mercado Único são, na verdade, passos cruciais para a transição para um futuro sustentável e socialmente justo, tais como as medidas destinadas a atingir os objectivos climáticos.

Por exemplo, à medida que a crise climática se agrava mais do que nunca, com secas, inundações e temperaturas recorde a proliferar por toda a Europa, a proibição pelo Governo francês de voos domésticos de curta distância que possam ser facilmente substituídos pelo comboio provocou queixas à Comissão Europeia por parte dos grupos de pressão da aviação. Em resposta, estas medidas urgentemente necessárias viram-se restringidas no seu âmbito. Agora, dadas as queixas dos grupos de pressão dos aeroportos, a intenção do governo neerlandês de reduzir em 25% o número de voos no aeroporto de Schiphol poderá também ela estar a ser ameaçada através das regras do Mercado Único.

Entretanto, tentativas recentes da Alemanha e da Polónia para conter o aumento do preço da energia resultante da dependência de combustíveis fósseis, cada vez mais caros, também enfrentaram resistência, usando o Mercado Único como justificação; o mesmo aconteceu com os planos para o financiamento de painéis solares num município dinamarquês, tendo sido vistos como uma potencial "distorção" da concorrência.

Como se coaduna tudo isto com os compromissos assumidos pela própria UE para a redução de emissões de CO2 em 55% até 2030?

O Corporate Europe Observatory mostra exactamente como as empresas e os seus grupos de pressão estão a usar estes mecanismos de execução para bloquear ou sabotar a legislação progressista urgentemente necessária a nível nacional e municipal num novo relatório, 30 years of the Single Market: Time to remove the obstacles to social-ecological transformation.

Outros casos de bloqueio de políticas legítimas incluem a obstrução de medidas de habitação social, iniciativas de saúde pública e legislação de protecção do consumidor relativamente a substâncias nocivas. Incluem também proibições de plásticos de utilização única, impostos sobre o açúcar e restrições ao alojamento turístico e aos jogos de azar. Em quase todos os casos, o sector empresarial tem conseguido fazer retroceder, atrasar ou enfraquecer a legislação progressista.

Agora, sob o lema de "concluir o Mercado Único", novas propostas da Comissão Europeia e dos grupos de pressão das empresas estão a empurrar-nos ainda mais para o rumo errado, procurando reforçar as regras e os mecanismos de aplicação existentes. Na verdade, em Junho de 2022, estes grupos de pressão exigiram que a UE removesse "todas as barreiras às operações comerciais transfronteiriças e aos investimentos intra-UE, formando um Mercado Único de pleno direito para todas as actividades económicas", e destacaram a desregulamentação do sector dos serviços como uma das principais prioridades.

A comunicação da Comissão, de Março de 2023, sobre "Os 30 anos de Mercado Único" anunciou uma série de novas iniciativas para "fazer cumprir as regras do Mercado Único existentes e eliminar as barreiras a nível dos Estados-membros", reflectindo ao pormenor as exigências dos grupos de pressão das empresas, como a European Roundtable of Industrialists (ERT) e a BusinessEurope. O que estes actores empresariais pretendem é, essencialmente, uma preempção das iniciativas a nível nacional que não se enquadrem na sua agenda.

Isto pode significar que, mesmo não havendo uma queixa activa, os novos regulamentos a nível nacional serão sujeitos a uma análise mais rigorosa, numa fase ainda mais precoce do processo de decisão. E a ameaça de as regras serem consideradas obstáculos ao Mercado Único poderá ter um efeito de congelamento, impedindo os governos ou os municípios de tentarem sequer introduzir novas regulamentações sociais ou ecológicas.

A Confederação Europeia de Sindicatos (ETUC) descreveu as reformas como estando a pôr "a UE a caminho de um nivelamento por baixo". Entretanto, as recomendações do Corporate Europe Observatory, bem como uma nova carta aberta da sociedade civil à Comissão Europeia, apelam a uma recalibração da forma como as regras do Mercado Único se aplicam a áreas como os serviços públicos, a justiça social e as medidas de protecção climática.

Se as crises da covid, do custo de vida e do clima nos ensinaram alguma coisa, é que o papel do Estado é crucial para enfrentar estas catástrofes frontalmente. Para que a Europa possa proteger e expandir os seus serviços públicos e protecções sociais, e enfrentar verdadeiramente a crise climática, terá de virar as costas ao neoliberalismo e tomar medidas para modernizar a governação do Mercado Único, de modo a salvaguardar as medidas nacionais e locais necessárias para uma transição ecológica justa.

Temos de mudar o paradigma. Em vez de eliminar os "obstáculos" identificados pela indústria ao Mercado Único da UE, devemos concentrar-nos em eliminar os verdadeiros obstáculos a uma transição social e ecologicamente justa.

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