Querem salvar o SNS? Então salvem os médicos!
As pessoas e os nossos políticos não sabem nem sonham o mal que estão a fazer à nossa saúde por tratarem tão mal os médicos.
É perigosamente desproporcional o mau tratamento que os médicos recebem e a nulidade de atenção e respeito dos decisores políticos, quando comparados com a sua importância na sociedade. Eu nunca fui corporativista (agradeço a quem o é) e sempre tentei guardar para mim as minhas opiniões sobre a injustiça imposta pela sociedade portuguesa aos médicos, para não ser juiz em causa própria. Mas, com o aparecimento da minha doença e o cada vez maior distanciamento da minha prática clínica, para minha grande tristeza, permito-me com mais liberdade falar dos médicos, porque embora talvez eu já não o seja, há uma coisa que não perdi: a preocupação com as pessoas, em particular se são doentes ou quando estão doentes.
Toda a gente grita “Salvem o SNS” e muito bem que gritam, mas quase ninguém se atreve a dizer, até parece que é pecado se for dito: “Querem salvar o SNS? Então salvem os médicos!”
Ainda bem que longe vão os tempos em que o médico e o padre estavam acima da lei, mas é muito perigoso para a saúde que se continue a falar de vocação, como se fosse um chamamento divino, que não é, e não se fale de dinheiro, carreira, carga horária, etc. Porque é disso que se trata, tempo e dinheiro, que são quase sinónimos, e onde os médicos estão a ser humilhados há anos e anos. E quem é que perde? Os dez milhões de portugueses.
Todos os profissionais de saúde (e não só) que trabalham no SNS são o SNS. Mas chamem-me de convencido, arrogante ou o que quiserem, os médicos são o elo mais importante da medicina. São. É inquestionável. Todas as profissões na saúde derivam da medicina, e não há ninguém que estude mais, tenha mais diferenciação nos seus conhecimentos e competências técnicas, e tenha mais responsabilidade na saúde das pessoas do que os médicos.
Nem com a famigerada pandemia as pessoas compreenderam que, enquanto os ignorantes achavam que era preciso contar ventiladores, quem sabe do que fala relembrava que o que era e é preciso contar são as pessoas com competências para lidar com os doentes e os ventiladores. E eu digo as pessoas, porque os políticos vão sempre atrás da opinião pública, que por sua vez desespera pela falta de consultas ou cirurgias mas despreza a luta dos médicos que são miseravelmente mal pagos para as horas que trabalham e a responsabilidade que carregam às costas.
Com 15 anos decidi ser médico e matei-me a estudar para entrar nas faculdades mais difíceis do país, e quando entrei também estudava com amigos de economia, direito, engenharia, arquitectura, etc., e ninguém estudava metade das horas que eu e os meus colegas estudantes de medicina estudam. Eu fiz um ano e meio de “internato geral”, enquanto estudava até à exaustão para o acesso à especialidade, para depois mais quatro anos de muito trabalho e muito estudo na especialidade de Anestesiologia (que agora são cinco), onde gastei mais de 15.000 euros na minha formação do meu bolso para pagar cursos e congressos para me tornar bem capaz de exercer, e depois fiz em três anos a especialidade de Medicina Intensiva com exames muito duros em todas estas fases, e depois disto tudo, o ordenado líquido são 1700 e poucos euros, e para a esmagadora maioria dos médicos, assim fica, para sempre.
Os pilotos da TAP têm salários na ordem das quatro a seis vezes mais, pagos pelos portugueses, e quando fazem um voo de oito horas descansam 72 horas, e não têm metade da formação, nem metade da responsabilidade dos médicos especialistas, onde milhares de clínicos trabalham 24 horas seguidas e, no dia a seguir, vão trabalhar.
Comparem com o salário de um juiz, de um professor nos últimos escalões (ou qualquer docente universitário), de um deputado ou de um informático, pagos pelo Estado. É aberrante o mal pagos que são os médicos em Portugal, porque, p.e., em Espanha ganham aproximadamente o dobro. Os médicos em Portugal estão no último lugar do ranking de quem perdeu mais poder de compra, nos últimos anos, na função pública. Último.
Eu sei que as comparações são sempre complexas, mas o que é evidente é o resultado disto: os médicos sentem-se, com razão, muito injustiçados, e infelizmente vão para o privado, e isto é péssimo para quem quer o melhor para a sua saúde, e de toda a sociedade. Eu não sou contra a existência da medicina privada porque pode ser útil para questões medicamente menos relevantes, mas sinto-me obrigado a dizer que ela é perversa por vários prismas, para além do mais óbvio que é o acesso desigual à saúde.
Os hospitais privados não se preocupam apenas com os doentes, preocupam-se acima de tudo em ganhar dinheiro, e se há áreas em que isso é normal, na saúde é perverso. A nossa “querida” pandemia também serviu para ver quem é quem. No início, os hospitais privados declararam-se “sem covid” e recusaram-se a tratar doentes covid porque eram maus para o negócio, e depois, quando o Governo começou a pagar por doente covid, os privados começaram à procura deles como se fossem uma galinha dos ovos de ouro, internando quem não precisava, e internando nos seus cuidados intensivos quem estava perfeitamente seguro numa enfermaria, porque o Estado pagava muito mais pelos doentes (supostamente) críticos.
Nós, no SNS, asfixiados e a dar o corpo às balas, e o Estado a esbanjar o dinheiro dos portugueses porque os privados não são intelectual e moralmente honestos. É que os privados são, numa enorme fatia (41% do todo gasto em saúde pelo Estado, em 2020), sustentados pelos contribuintes, mas depois só deixam entrar quem tem dinheiro.
O sistema de saúde privado é perverso e desumano. Quem lá trabalha, eu compreendo. Há pessoas incríveis por quem eu nutro uma enorme admiração que lá foram parar. Mas não tenho admiração maior pela competência e humanismo de médicos e médicas (e muitos outros profissionais, claro) com quem eu tive a honra de trabalhar e aprender, lado a lado, no SNS.
Mas talvez ainda pior é o efeito que isto tem nas pessoas enquanto doentes que exigem o que não é preciso, e como são eles que pagam, convencem-se de que assim é que se faz. Exigem uma TAC cerebral por cada dor de cabeça, exigem ser tratadas ao que não têm, exigem um antibiótico quando não é preciso, que é o maior erro médico do mundo porque mata cerca de cinco milhões de pessoas por ano. Isto é perverso porque faz mal ao próprio doente, e cultiva um clima de exigência patológica de toda a população que muito erradamente entende que em frente a um médico pode decidir, o que não pode. O que pode sempre decidir é se aceita ou não a proposta feita pelo médico na sua melhor interpretação da situação clínica. Isto é simples? Não. Ser bom médico dá muito trabalho, mas para além do óbvio que é o que se ganha em vidas e em qualidade de vidas, ser bom médico também poupa muito dinheiro ao bolso dos portugueses.
E, por “estranho” que pareça, a única forma de manter os bons médicos no SNS é pagando-lhes o que eles merecem, mas isto não é um custo, isto é um investimento que dá lucros. Os pilares da democracia – justiça, segurança, educação e saúde – têm que ser públicos, porque se um pilar cai, e outro qualquer abana, cai a democracia.
Quem me conhece sabe o quanto eu valorizo todos os profissionais de saúde, sou completamente contra o endeusamento dos médicos, e já várias vezes me manifestei, p.e., a favor da causa dos enfermeiros, que é muito justa e importante. Mas aos médicos ninguém se junta ou apoia, e depois todos se queixam da sua falta, porque será? Não vou entrar em discussões estéreis sobre se a saúde é mais importante que a educação, a segurança ou a justiça, sem as quais nada existe numa sociedade que se pretende que viva em harmonia, mas digo isto com muita convicção: as pessoas e os nossos políticos não sabem nem sonham o mal que estão a fazer à nossa saúde por tratarem tão mal os médicos.
Dinheiro, é também disso que se trata. Faltou-me falar do tempo, que vale tanto como o dinheiro, e o abuso de horas que os médicos trabalham com um brutal prejuízo na sua vida pessoal… mas já vai longo este texto.
Há pessoas que vão dizer que isto é fazer política, mas o que eu estou a tentar fazer é humanidade. Nenhuma destas palavras foi escrita a pensar em mim ou nos meus (ex-) colegas. Foram todas escritas a pensar nas pessoas e na sua saúde.
O SNS foi a maior conquista do 25 de Abril, e ainda é a cara mais bonita da nossa democracia, e por culpa própria, nós, estamos a deixá-lo fugir, assim, entre os dedos…
Querem salvar o SNS? Então salvem os médicos!
As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel António da Mota a favor dos Médicos sem Fronteiras