O que não cabe na família

No norte e centro de Itália, iniciam-se processos para remover o nome de mulheres lésbicas das certidões de nascimento dos seus filhos.

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“Era como se eu não existisse.” É assim que Michela, professora italiana de 33 anos, descreve a experiência de ver o seu nome apagado da certidão de nascimento da sua filha, a pequena Giulia. A sua companheira, Viola, é a mãe biológica da criança. Juntas há 11 anos, celebraram uma união civil em 2020, e Viola engravidou por meio de inseminação artificial numa clínica em Espanha, à qual recorreram para realizar o procedimento. Em Itália, onde sempre viveram, tal seria impossível: a casais homossexuais está vedado qualquer tratamento médico reprodutivo, como é o caso da fertilização in vitro. Em Milão, Florença e Fiumicino, perto de Roma, iniciam-se processos para remover o nome de mulheres lésbicas das certidões de nascimento dos seus filhos.

A imprensa britânica reportou o caso de Michela e Viola há menos de uma semana, embora a notícia não tenha sido uma total surpresa para muitas de nós. A coligação de extrema-direita populista encabeçada pela primeira-ministra Giorgia Meloni, que governa o país desde 2022, defende que a lei italiana não permite que crianças tenham duas mães. Em verdade, o que está em causa é um vazio legal perigoso e lamacento.

As uniões entre pessoas do mesmo sexo foram legalizadas em 2016, por imposição de um movimento social cujos protestos se tornaram irrefreáveis, mas a feroz oposição da Igreja Católica e a cumplicidade dos partidos do regime limitou esse avanço em matérias chave: nomeadamente, a adoção e o acesso a tratamentos médicos reprodutivos.

A lei, no entanto, é omissa quanto à questão da co-adoção, ou seja, não determina se o parceiro em casais do mesmo sexo pode ou não ser reconhecido como mãe ou pai na certidão oficial. Partindo da ambiguidade do enquadramento legal, os administradores locais tinham, até agora, rédea solta para, na base das suas convicções pessoais, definirem o procedimento para cada caso. Assim, arranjos como o de Michela e Viola são recorrentes e estimam-se que existam, em Itália, cerca de 13.000 casais em situação semelhante.

Ora, a crise social que abraça o continente europeu arrasta-se numa agonia longa desde os idos de 2007. Em Itália, que não teve um processo austeritário de reestruturação violenta como Portugal ou Grécia, esta crise tomou a forma de um impasse entre a estagnação económica herdada dos anos 2000 e a ofensiva capitalista necessária e iminente para restabelecer a competitividade do capital no país. Continuando essencialmente a política do governo de Mario Draghi, Meloni e os Fratelli d’Itália vêm conferir-lhe uma base social, mobilizando as camadas das classes médias contra o proletariado emigrante e racializado, contra os pobres e os “subsídio-dependentes”, contra a erosão das velhas hierarquias, prometendo recuperar a ordem perdida.

Neste contexto, com quem dormimos e com quem optamos por criar família (ou não criar) é assunto de Estado. Um dos fundamentos do projeto político da direita populista é a família – e, no centro da família, está um útero. O controlo da capacidade reprodutiva de mulheres e meninas é a bandeira de campanha dos grandes partidos e coligações de extrema-direita europeia, que se reorganizam agora tendo em vista as eleições para o Parlamento Europeu de 2024.

Meloni e o seu partido-milícia carregam o mesmo estandarte: a defesa da família nuclear e dos valores tradicionais, que é como quem diz, coagir as mulheres de volta ao seu lugar historicamente balizado: a casa, a maternidade e o casamento (heterossexual). Afinal, a existência de mulheres que amam outras mulheres desafia o essencialismo que alicerça a hierarquia de género e a desigual relação de poder entre os sexos, que naturaliza o papel de devoção emocional, sexual e reprodutiva incumbido a mulheres em relações heterossexuais. O amor lésbico é, terminantemente, revolucionário.

Do outro lado da barricada, o “superior interesse da criança” é frequentemente instrumentalizado pela extrema-direita em defesa da família nuclear tradicional e dos seus valores bafientos, ocultando que também dentro destas famílias ocorrem as mais revoltantes violências. Afinal, amar e cuidar de outro ser humano, na forma do laço afetivo que viemos coletivamente a associar à estrutura familiar, não ocorre em razão de decreto. Não obstante, na idílica cidade medieval de Pádua, no norte de Itália, as autoridades têm vindo a tomar medidas retroativas para remover o duplo reconhecimento das mães nas certidões de nascimento de 33 crianças, num total escandaloso de 27 famílias. Vanessa Finesso e a sua companheira Cristina Zambon, ambas empregadas fabris, receberam a mesma carta que Michela havia recebido em janeiro deste ano, advertindo que o nome de Cristina não poderia constar na certidão de nascimento da sua filha, Vittoria, pois foi Vanessa quem a gestou.

É fácil, partindo de um certo lugar que ocupamos no mundo, atribuir a casos como este o veredicto de opressão simbólica que, ainda que infeliz, dificilmente ultrapassa a consequência de um documento impreciso. A realidade desmente o preconceito. Vanessa, a mãe de 33 anos, foi diagnosticada com cancro e colocada perante a ansiedade de um futuro incerto. Questiona: “De acordo com a lei, sou eu a mãe. O que acontece se eu morrer e sobrar apenas a minha esposa? De acordo com essa mesma lei, ela não tem direitos nem deveres para com a nossa pequena Vittoria.”

Do grotesco de uma filha arrancada da mãe e de um futuro destituído de chão, pergunto, se nem Michela nem Cristina nela cabem, para que é que queremos a família?

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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