Política e Justiça, a inutilidade de uma guerra oportunamente evitada

A jurisprudência europeia afirma que o facto de o MP se organizar hierarquicamente no plano interno, mas à revelia de diretivas de qualquer outro poder público, não afeta a sua independência.

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Ao contrário do que é habitual, não houve no caso das buscas à sede do PSD e à casa do seu anterior presidente espaço para a costumada demagogia em torno da autonomia do Ministério Público (MP), que, como todos os políticos democratas e responsáveis sabem, é um requisito essencial da independência da Justiça.

Isso mesmo foi afirmado – oportuna e claramente – pelo presidente da Assembleia da República.

Sobre este problema – identificando a autonomia do MP com a sua independência relativamente aos outros poderes do Estado – se tem pronunciado, aliás, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE).

Este tribunal vem referindo que sistemas de MP subordinados ao poder político – como acontece ainda na Alemanha – não permitem que este possa ser considerado uma autoridade judiciária, o que já teve, e tem ainda, reflexos imediatos na determinação das funções que lhe competem no processo.

Conceito esse – o de autoridade judiciária – que o TJUE reivindica, ainda, como integrando, agora, o acervo do Direito Europeu.

A mesma jurisprudência europeia afirma, no entanto, também, que o facto de o MP se organizar hierarquicamente no plano interno, mas à revelia da influência de diretivas de qualquer outro poder público, não afeta a sua independência.

A Constituição da República portuguesa que, pioneiramente, consagrou a autonomia do MP, define, entre outras características próprias, o MP como uma magistratura hierarquizada.

O exercício dessa hierarquia tem a virtualidade de permitir ao MP uma organização mais flexível e operacionalmente mais adequada do que a que assiste aos juízes – titulares únicos de um processo – e foi precisamente por essa razão que a investigação criminal passou, na fase do inquérito, da titularidade do juiz de instrução para o MP: acreditava-se, com acerto, que tal plasticidade de ordenação funcional proporcionaria uma resposta mais eficaz à moderna criminalidade organizada.

Em todo o caso, o Estatuto do MP procurou, desde sempre, assegurar a cada procurador titular de um processo um grau de autonomia e garantias de preservação da sua consciência jurídica bastantes.

Tais garantias implicam, agora, para além da hipótese de recusa, que as ordens e diretivas superiores dirigidas aos processos devam ser dadas por escrito, para que seja possível identificar quem realmente ordenara, ou não, uma qualquer diligência processual.

Esta garantia salvaguarda a responsabilidade própria do titular do processo e permite às partes nele envolvidas identificarem o responsável pela diligência, garantindo assim, também, a invocação de impedimentos e suspeições processuais que, eventualmente, se evidenciem.

Hoje, alterações mais recentes ao Estatuto criaram, contudo, uma zona cinzenta – como agora se usa dizer – relativamente ao exercício da hierarquia interna no âmbito das funções processuais.

Tal situação tem impedido, assim, que os responsáveis hierárquicos – supostamente mais qualificados e experientes – intervenham responsavelmente no decurso de investigações de que não são diretos titulares: o seu papel atual quase se limita à intendência das procuradorias.

Tal situação penaliza a capacidade e plasticidade operacional do MP, reduz quase ao mínimo a responsabilidade processual dos que exercem funções hierárquicas e permite, com frequência crescente, deixar queimar, solitariamente e em lume brando, os magistrados mais novos e menos experientes titulares de processos complexos e com impacto público.

Permite ainda – muito mais gravemente – que muitos destes mais jovens magistrados acabem, na ausência do suporte e corresponsabilização dos seus superiores hierárquicos, por procurar o necessário apoio externo nos oficiais de polícia experimentados, que com eles trabalham num dado processo.

Tal resultado, que pudemos ir verificando em inúmeras situações, inverte o papel que o MP deveria assumir: a direção estratégica da investigação e controlo da legalidade das diligências a realizar pela polícia.

Na prática, assiste-se, não raramente, à substituição da hierarquia funcional exercida, com garantias e no seio da magistratura, por uma "influência" externa e informal, por vezes direcionada, sobretudo, para objetivos que não correspondem, exata e unicamente, aos que a lei comete aos magistrados no processo.

Por exemplo, à polícia compete, antes do mais, interromper a atividade criminosa e garantir à opinião pública que a segurança e a paz públicas estão restabelecidas.

Daí, muito naturalmente, uma sua relação próxima e necessária com os media.

Tal relação, porém, corre sempre o risco de ser ambígua.

Razão pela qual, a hierarquia policial e a do MP, respetivamente, tiveram já, em várias ocasiões, de tomar a iniciativa de denunciar e acusar os que, em alguns casos, ultrapassaram as linhas vermelhas impostas por lei a tais contactos.

Algumas de tais situações, alvo da referida atenção da hierarquia policial e do MP, envolveram, curiosamente, também, os mesmos media de que hoje tanto se fala no presente processo.

O abandono e solidão a que são, deste modo, votados, hoje, os procuradores com intervenção em processos de grande complexidade e repercussão pública podem, na verdade, não justificar tudo, mas explicam muita coisa.

Por essa mesma razão, na Itália, onde o conceito de autonomia externa e interna do MP foi levado aos limites máximos, foi necessário, depois, através de um diploma de organização das Procuradorias, devolver aos responsáveis hierárquicos pelas diferentes Procuradorias a função exclusiva de decidir da oportunidade dos pedidos de medidas mais intrusivas e lesivas das liberdades individuais.

Nesse país, só depois do acerto entre os magistrados do MP dos diferentes níveis hierárquicos, pode o procurador titular do processo avançar, quando se justifique, com um pedido ao juiz de instrução para que autorize as referidas diligências.

Entre elas, por exemplo, os mandados de detenção para prisão preventiva, mandados de busca e apreensão, escutas e outras medidas de igual melindre.

Entre nós, creio, não seria necessário acrescentar tal medida legal ou regulamentar ao Estatuto do MP, bastando colmatar no Código de Processo Penal as medidas que exigiriam um acompanhamento e intervenção mais direta e responsabilizante da hierarquia do MP no processo.

Dada a natureza deste tipo de medidas e a opção pela judicialização da investigação que enforma todo o sistema processual penal português, entendo ser este o melhor instrumento legal para regular tais intervenções.

Como já repetidamente defendi, estou certo de que, desta maneira, seria possível assegurar a todas as partes envolvidas uma maior transparência processual no que respeita à intervenção hierárquica do MP.

Simultaneamente, propiciava-se aos magistrados titulares dos processos o conforto e apoio dos seus superiores, ajudando-os a manter a sua autonomia estatutária também perante as entidades policiais.

Estas – subordinadas organicamente ao poder executivo – têm, também, na verdade, objetivos funcionais e prioridades legítimas próprias, que, em muitos aspetos, não coincidem, nem têm de coincidir, exatamente, com as que são cometidas à Justiça.

Retomando-se a lógica inicial da direção do inquérito pelo MP, diminuir-se-ia, porventura, a possibilidade de concretização de diligências desnecessárias, abusivas e desproporcionais às finalidades da investigação criminal, mas que são executadas, no terreno, por entidades policiais que, hoje, só formalmente – como a prática confirma – dependem no processo daquela magistratura.

Estudar e concretizar um protocolo – e um guia – de relacionamento funcional do MP com as polícias, no âmbito das diligências processuais que estas entidades têm de levar a cabo, ajudaria, também – estou seguro – a oferecer-lhes um mais consistente apoio jurídico na definição e recolha dos elementos de prova necessários, em concreto, a cada investigação.

Deste modo, diminuir-se-iam, ainda, as possibilidades da ocorrência de nulidades e irregularidades, mais tarde, declaradas – com prejuízo irremediável para a investigação – pelos tribunais.

Acresce que, sem violação da atual e legal autonomia técnica das polícias na definição dos dispositivos operacionais e do número de agentes a envolver numa dada operação – isso é, note-se, já hoje, competência delas –, sempre seria possível ponderar, mais aprofundadamente e a tempo, os efeitos, não previstos, que algumas opções tomadas e pensadas unicamente do ponto de vista tático e operacional sempre comportam.

Assegurar-se-iam, assim, também, mais eficientemente, os procedimentos necessários a garantir as liberdades dos cidadãos e as responsabilidades próprias dos magistrados e dos polícias.

Neste plano de análise e aperfeiçoamento legislativo, terá sempre o poder político a principal responsabilidade e última palavra.

P.S.: O Tribunal de Contas, no âmbito dos pareceres sobre a Conta Geral do Estado dos anos 2018, 2019 e 2020, dedicou algum espaço à análise da regularidade jurídica dos pagamentos feitos no âmbito das subvenções atribuídas aos grupos parlamentares às atividades partidárias extraparlamentares que podem ajudar a compreender os problemas jurídicos de fundo que se suscitam e, portanto, também, a leitura que da lei foi feita pelo magistrado do MP titular do processo.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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