A pega-rabuda

A mulher há muito que comia papel, tecido (desde que fosse de algodão), esponja, e por vezes, embora raramente, tijolo. Porquanto, nunca lhe fizeram mal.

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Megafone P3: A pega-rabuda Pixabay
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"Sofre de um transtorno alimentar", dissera-lhe o psiquiatra. O veredicto do novo médico chegou-lhe depois de a mulher ter resumido a história da sua vida adulta em cerca de cinquenta minutos. Setenta euros em troca de uma enxaqueca mortificante.

Não esperava ouvir uma banalidade daquelas. Não respondeu. Limitou-se a anuir ao terapeuta, sentado numa poltrona azul-escura idêntica à sua, diante de si. Sabia de antemão qual o diagnóstico e a terapêutica. Na sala sobreaquecida pelo ar condicionado, sob a luz pálida da tarde de Inverno vinda da única janela da pequena sala, a mulher olhou para os cortinados brancos e sentiu fome.

O tecido abriu-lhe o apetite, mas talvez não fossem de algodão cru. O médico permaneceu a olhá-la, em silêncio, esperando algum sinal para prosseguir o interrogatório que, sinceramente, não iria resolver-lhe o desfastio. Pudesse ao menos tirar um pouco do tecido e pô-lo à boca. Só uma pequena tira, e ficava saciada.

Sentia-se como se estivesse há mais de três dias sem comer. E, no entanto, nem hora e meia passara ainda desde o almoço; tinha aviado bem o estômago na cantina, antes da consulta, para evitar que lhe surgissem os apetites. Os apetites bizarros, era assim que os outros lhes chamavam.

A mulher há muito que comia papel, tecido (desde que fosse de algodão), esponja, e por vezes, embora raramente, tijolo. Porquanto, nunca lhe fizeram mal – o estômago e os intestinos não se queixavam. Contrariamente ao marido e aos familiares próximos que contestavam os seus apetites e os classificavam de bizarros.

Começou por comer pedacinhos de papel quando engravidou da primeira filha. Ninguém estranhou em demasia, afinal, não passariam de desejos transitórios de uma prenhe. Um ou outro pedacinho de papel Cavalinho também não faria mal à criança. A avó dissera-lhe: "Come, filha. Não vá a criança nascer aguada. Mais tarde, vai sofrer de febres altas ou delírios".

E assim foi comendo, durante a gravidez, somando todos os pedacinhos, deve ter ingerido na totalidade algumas páginas A4. Depois, a menina veio ao mundo. Robusta e saudável. Só que os “desejos” da mãe por papel continuavam e, nessa altura, já ninguém a desculpava, nem mesmo a avó. "Vais empeçonhar o leite da menina". Por isso, teve de começar a fazê-lo às escondidas.

Durante bastante tempo, só papel. Foi já depois de a filha dar os primeiros passos, ao comprar um saco de esponjas cortadas em pedaços para encher as almofadas do sofá mirradas pelo uso, que lhe surgiu o novo desejo — comer um pedaço espongiário. E assim aconteceu, provou um bocado e não desgostou. Então, mudou de ementa.

Certo dia, estava a menina dormindo a sesta, encontrava-se absorta num episódio da telenovela da tarde, picando um pedaço de esponja com os dedos e levando-o à boca e não deu pelo marido entrar em casa. Fora dispensado mais cedo do serviço e não esperava encontrar a mulher mastigando esponja como uma iguaria.

"Por que raio estás a comer a almofada?" A pergunta ficara-lhe gravada na memória. Uma pergunta com censura, sentira-o como uma acusação carregada de asco. Não tinha explicação. Comia porque lhe sabia bem, porque lhe apetecia. Foi a primeira vez que a obrigaram a ir ao médico da cabeça e ao da barriga.

Logo na primeira consulta de psiquiatria foi diagnosticada. Síndrome de Pica. Uma condição rara nos seres humanos, também conhecida por alotriofagia. Caracteriza-se pelo apetite por substâncias não nutritivas, como terra, carvão ou tecidos. "Mas porque se chama pica?" Perguntara ao médico. "Vem da palavra em latim para o pássaro pega-rabuda, que também é conhecido como pega-rabilonga ou pica-pica. Faz parte da família Corvidae, dos corvos, está a ver?"

Sim, a mulher estava a ver. Detestava pássaros e antipatizava com o médico por lhe ter dado aquela informação. Foi informada de que se não parasse com aqueles comportamentos alimentares adoeceria. Fez exames físicos – da cabeça ao intestino. Nada, nenhuma maleita, aparentemente estava tudo bem.

Teve de jurar ao marido — pararia de comer coisas impróprias. Jurou pela filha deixar de ser aquilo que, entretanto, se tornou a sua alcunha no seio da família, uma pega-rabuda. Voltou a engravidar. Na segunda gravidez, desejou comeu um pedaço do babygro por estrear, 100% algodão biológico.

Foi à caixa da costura, trouxe a tesoura consigo e recortou do fatinho um pequeníssimo pedaço. Mastigou com deleite, soube-lhe pela vida. Não contou a ninguém a descoberta dos novos gostos, teve consciência da penalização moral a que seria submetida. Durante a gestação foi comendo o fato do bebé, pedacinho por pedacinho, ocultando-o do marido e da filha, até sobrarem apenas as molas de pressão, junto à tira do cós do babygro.

Infelizmente, não foi suficientemente cautelosa e deixara, por lapso, a tira do cós dentro da gaveta das roupinhas de bebé. O desleixo fora descoberto pelo marido que, claramente chocado e cheio de repulsa, a condenou por andar a comer o enxoval do menino. Obrigou-a a prometer auto-internamento psiquiátrico, assim que a criança deixasse de lhe beber do peito.

Esperando que o marido mudasse mais tarde de ideias, prometeu-lhe, em pranto, ir curar-se onde fosse preciso, pelo tempo necessário. Por isso, ali estava. Sentada num dos consultórios do hospício. A salivar para os cortinados que desejaria serem de algodão cru; porém, o mais certo seria uma malha jersey.

No quarto onde a tinham alojado, dormia sobre uma tábua, sem colchão de esponja, lençóis ou cortinados. A fome por substâncias impróprias era tanta que, por vezes, conseguia rasgar com os dentes um pouco de tecido das cuecas, comendo-o depois sentada no chão da cela, morosamente, com satisfação.

Quando as cuecas começaram a desaparecer, retiraram-lhe também as roupas interiores. Usava o pijama que lhe fora dado, totalmente composto por um poliéster incomestível. Tinha fome. Tanta. Olhou para os cortinados, talvez fossem, de facto, em jersey. Olhou para o médico. Por baixo da bata, sobressaía uma gola alta cinzenta, aparentava ser de algodão. Não tinha a certeza. Não disse nada. Levantou-se da cadeira e atirou-se de cabeça ao pescoço do homem. Não medindo a força nem o desejo, abocanhou tecido e carne de uma vez só.

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