O “esquecimento insuportável” a que foi votada a professora Olga Pombo

Anuncia-se para dia 12 “uma grande conferência” para celebrar os vinte anos do CFCUL, celebração que prima pelo esquecimento da sua fundadora, Olga Pombo.

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Na verdade, desde a Academia de Platão que a escola é justamente esse lugar de transmissão do legado cultural entre gerações pelo qual o homem conquista a eternidade, não dos indivíduos, mas da arte, da ciência e da filosofia.
Olga Pombo

Estava na Associação de Professores de Português (APP) e, lidando de perto com a formação de professores, pude tomar conhecimento da reforma curricular que se preparava no Ministério da Educação, em estreita cumplicidade com a APP e a Associação Portuguesa de Linguística (APL). Uma reforma obcecada com o “novo”, o “funcional”, o “presente”, numa lógica de aversão ao passado, ao velho, que abrangia igualmente o acto de ensinar, e ainda obcecada com a “avaliação” e o “discurso pedagógico”, numa perspectiva miserabilista relativamente aos alunos, em nome de quem se falava, fazendo uso de uma autoridade repressiva, alheada por completo do significado de competência e da necessidade de uma atitude crítica. A testemunhá-lo, o facto de a Nota Prévia que acompanhava os novos Programas de Português do Secundário, enviados aos professores, acentuar que “as suas críticas não poderiam colidir com as metodologias apresentadas”.

As contínuas posições contrárias às da APP, em cujo processo de luta fui acompanhada pelo professor Carlos Ceia, as reuniões vãs com a Comissão de Educação da Assembleia da República e outras individuais com elementos dos vários partidos, focando a catástrofe que se aproximava, desgastaram-me até à exaustão, tendo encontrado no livro sublime da Professora de Filosofia, Olga Pombo, intitulado A Escola, A Recta e o Círculo (Relógio D’Água, 2002), a força imperiosa de que necessitava, tal o mundo às avessas em que me movimentava e que me parecia inelutável pelos contínuos absurdos que se iam revelando.

Nesse livro, Olga Pombo analisava ao pormenor a nova ordem que se pretendia definitivamente estabelecer e cujo ruído imperturbável já se manifestara durante toda a década de 90. Uma aturada experiência e argumentação consistentemente fundamentada caracterizavam o desenvolvimento dos vários itens - Escola, Pedagogia, Formação de Professores, Ensino das Ciências – conduzindo a uma forçosa reflexão, numa leitura apelativa que nos comprazia e através da qual nos identificávamos com a autora, o que, nessa época, foi balsâmico, para muitos professores.

A epígrafe, texto de Hannah Arendt, que inicia o primeiro item, “A Escola, a Recta e o Círculo”, continua a ser uma vigorosa resposta à debilidade argumentativa e à arrogância dos orientadores da referida Reforma Educativa, muitos dos quais continuam orgulhosamente a conduzir o Ensino: Faz parte da natureza da condição humana que cada nova geração cresça no interior de um mundo velho, de tal forma que, preparar uma nova geração para um mundo novo só pode significar que se deseja recusar àqueles que chegam de novo a sua própria possibilidade de inovar.

Na sua viva e enérgica actividade académica, Olga Pombo haveria de fundar, em 2003, o Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa (CFCUL), situado na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL) e cujo desenvolvimento originou “uma equipa internacional e interdisciplinar que inclui membros integrados e colaboradores com afiliação a diferentes instituições.” Olga Pombo foi, pois, a sua primeira coordenadora e durante 14 anos, ou seja, entre 2003 e 2017, ano em que se reformou.

Foi precisamente através de um colaborador do CFCUL, Daniel Andler, professor emérito de Filosofia, na Sorbonne, que tomei conhecimento de que entre 12 e 15 de Julho, p.f., teria lugar, e transcrevo, o “4th Lisbon International Conference on Philosophy of Science” (LICPOS, 2023) “uma grande conferência para celebrar os vinte anos da fundação” do referido Centro, o único de Filosofia das Ciências, em Portugal, celebração essa que prima pelo esquecimento da sua fundadora que, inclusive, foi orientadora de doutoramento de muitos dos actuais membros, com funções relevantes no Centro e que, cultivando o esquecimento, primam por uma absoluta e intolerável ingratidão.

Foi também Daniel Andler que me deu a conhecer uma carta-aberta que protesta contra a exclusão da Professora Olga Pombo da grande conferência-celebração do vigésimo aniversário do CFCUL, e da qual traduzo alguns passos mais elucidativos: O “CFCUL, como instituição, é a criação de uma única pessoa, a Professora Olga Pombo. Fundou o Centro em 2003 e liderou-o até à sua aposentação em 2017. Sem a sua incansável dedicação, coragem, clareza de objectivos, perspicácia e inteligência social, o CFCUL não existiria provavelmente, e não teria atingido a sua reputação internacional, que é também certamente devida às realizações de todos os membros permanentes e temporários ao longo dos anos em que ela soube atrair, convidar e, em muitos casos, supervisionar. […] e chegamos ao objecto da presente carta-aberta – [a Prof.ª Olga Pombo] está totalmente ausente do programa da conferência. Não integra a comissão científica, não foi convidada a apresentar o discurso introdutório, foi completamente ignorada, apagada, por assim dizer, do histórico do CFCUL. A criação do CFCUL em 2003 será assim celebrada com uma conferência 20 anos mais tarde, em 2023, na ausência e no esquecimento total da fundadora do Centro, e por muitos anos directora, ainda viva e activa, uma distinta personalidade sénior. Com todo o respeito por aqueles que agora dirigem o Centro e pelos membros da comissão científica da LICPOS 2023, este esquecimento é simplesmente insuportável. Contraria as boas práticas académicas e regras de decência numa instituição respeitável. Lembra alguns infelizes episódios na História. De uma perspectiva humana, é revoltante. Deste modo, os signatários desta carta, manifestam-se contra esta tentativa de apagar a memória e menorizar toda a carreira da Prof.ª Olga Pombo.”

Esta carta-aberta, com data de 5 de Julho, tem mais de uma centena de subscritores, entre nacionais e estrangeiros, referindo-se, entre muitos outros, os nomes de Alexandre Quintanilha, António Bracinha Vieira, João Pedro da Ponte, José Bragança de Miranda, Luísa Arruda, Nuno Nabais, Maria Augusta Babo, Maria Filomena Molder, Onésimo Teotónio de Almeida, e enumerando-se também, e apenas, as nacionalidades de muitos colaboradores do CFCUL: Alemanha, Angola, Argentina, Bélgica, Brasil, Chile, Espanha, Finlândia, França, Grécia, Israel, Itália, Noruega, Polónia, Reino Unido, Suíça, Ucrânia e USA.

Surpreendentemente, os novos dirigentes do CFCUL estão em perfeita sintonia com os que pretendem ignorar o passado, silenciando conscientemente a verdade dos factos, neste caso, a história do CFCUL. Não é a “arte, a ciência ou a filosofia” que os move, apenas uma desmedida vaidade pessoal e sobranceria intelectual e daí a incapacidade em manifestar a sua gratidão à Professora Olga Pombo.

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