A “Dama de Marfim” ibérica revela liderança das mulheres há cinco mil anos

Provavelmente líder política e religiosa, viveu entre a Idade da Pedra e a Idade do Bronze e ilustra o papel social e político das mulheres nas primeiras sociedades pré-estatais.

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O achado arqueológico data de 2008 MIRIAM LUCIANEZ TRIVINO/Reuters

Quando uma equipa de arqueólogos descobriu um túmulo megalítico em Espanha, datado de há cerca de 5000 anos e com objectos sumptuosos como um punhal feito de cristal de rocha, casca de ovo de avestruz e uma presa de elefante africano, sabiam que a pessoa enterrada era uma figura poderosa. Do que não se aperceberam é que se tratava de uma mulher.

Os investigadores disseram na quinta-feira que uma análise do esmalte dos dentes mostrou que que o corpo sepultado no local perto de Sevilha não era um homem, como se pensava inicialmente, concluindo que as mulheres tinham um papel de liderança nesta antiga sociedade que antecedeu as pirâmides do Egipto e que talvez tivessem essa proeminência noutros locais.

Foi apelidada de "Dama de Marfim" devido aos finos objectos funerários de marfim que a rodeavam e ao facto de uma presa de elefante de elefante ter sido colocada por cima da sua cabeça durante o enterro, como se a protegesse. O túmulo está datado no período entre 2800 e 2900 a.C. Escavado em 2008, é a estrutura mais impressionante do género, e daquela época, do que qualquer outra conhecida na Península Ibérica.

"Ela destaca-se como a pessoa mais proeminente que alguma vez viveu naquele período" nesta região, diz o professor de Pré-História da Universidade de Sevilha Leonardo García Sanjuán, um dos autores da investigação agora publicada na revista Nature.

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Alguns dos objectos encontrados no túmulo da "Dama de Marfim" Miriam Lucianez Trivino/REUTERS

Embora os investigadores não saibam exactamente quem ela era ou que papel social que desempenhava, suspeitam que tinha poder político e religioso e que pode ter sido vista como a fundadora de um clã importante.

Nenhum homem de estatuto semelhante foi encontrado no local. Localizado nas imediações estava um túmulo igualmente sumptuoso, contendo os corpos de pelo menos 15 mulheres — que se pensa ter sido construído por pessoas que reivindicavam descendência da "Dama de Marfim".

“Grandes transformações”

"O terceiro milénio a.C. é uma época de grandes transformações. Na Mesopotâmia e no Egipto, os primeiros séculos do terceiro milénio correspondem às primeiras dinastias. Nas Ilhas Britânicas, é a época do apogeu de Stonehenge, um importante santuário e monumento megalítico", disse García Sanjuán.

"Na Península Ibérica, é uma época de crescente complexidade social, com intensificação da produção, maior disponibilidade de excedentes, crescente
conectividade inter-regional e aumento da desigualdade social e hierarquia política. A 'Dama de Marfim' reflecte todos estes elementos", afirmou García Sanjuán.

Neste período, a Península Ibérica era um espaço onde viviam sociedades complexas mas que precederam a formação de estruturas políticas como os Estados.

"Este estudo lança uma nova luz sobre um problema sobre o qual sabemos muito pouco: o papel social e político das mulheres nas primeiras sociedades pré-estatais complexas", afirmou García Sanjuán. A "Dama de Marfim" mostra que as mulheres podem ter ocupado posições de liderança durante a Idade do Cobre, um período de transição entre a Idade da Pedra e a Idade do Bronze, já tecnologicamente mais sofisticada.

"A complexidade política das sociedades pré-estatais é geralmente associada a conceitos como ‘homem grande’ ou ‘chefias’, que explicam o aparecimento das primeiras formas de liderança", afirmou a co-autora do estudo Miriam Luciañez-Triviño, investigadora do Departamento de Pré-História e Arqueologia da Universidade de Sevilha.

"Na literatura etnográfica, estes líderes são, na maioria das vezes, do sexo masculino. No entanto, o nosso estudo fornece dados que podem ajudar a rever
interpretações da Pré-História peninsular (ibérica) e europeia, mostrando que ainda sabemos pouco sobre o papel das mulheres em posições de poder durante este período", acrescentou.

O estado fragmentado do esqueleto dificultou a determinação do seu género. Algumas características tinham levado a conclusões anteriores de que a
pessoa era "provavelmente do sexo masculino". Os investigadores resolveram o mistério analisando um molar e um incisivo — detectando a presença de um gene que regula uma determinada proteína formadora de esmalte e revelando que se tratava de uma mulher.

"Uma das chaves para o progresso da arqueologia pré-histórica é a utilização de todos os novos métodos analíticos disponíveis", afirmou Luciañez-Triviño.

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