Equilibristas nas paragens da Rodoviária Nacional

Nunca trepei às árvores mas tornei-me especialista em subir às paragens de autocarro e saltar do topo para o chão sem partir sequer as canelas.

Foto
Megafone P3: Equilibristas nas paragens da Rodoviária Nacional Pexels
Ouça este artigo
00:00
02:28

Cresci na cidade, na periferia urbana com pouca vegetação, por isso não subi às árvores mas, em vez disso, trepei paragens de autocarro da Rodoviária Nacional. Eu e os meus primos, todos rapazes excepto eu, crescemos juntos e maioritariamente à solta, como cães vadios, pelas ruas da Cova da Piedade.

Em frente à casa da minha avó materna, havia um largo que funcionava como terminal de uma carreira de autocarros que ia de Cacilhas ao bairro do Pombal, na Cova da Piedade. Era um largo pequeno com uma capela onde foram baptizados alguns dos meus primos, como se pode confirmar nas imagens dos vários eventos religiosos, guardadas em álbuns de fotografias no armário em casa da minha mãe.

Esse largo tinha um pequeno jardim com duas paragens de autocarro, uma de cada lado — numa delas os passageiros saíam, no outro entravam novos viajantes a caminho de Cacilhas. Eu e os meus primos tínhamos como desafio e passatempo trepar às paragens de autocarro.

Não era tarefa fácil para crianças que tinham na altura entre os cinco e os sete anos de idade. O meu primo mais velho, que frequentava a segunda classe, foi o primeiro a conseguir executar a árdua missão de se equilibrar no topo do ferro da paragem, como um equilibrista contratado pela Rodoviária Nacional.

A partir desse dia, todos os primos quiseram concretizar aquela missão, que parecia assustadora aos olhos de uma criança que media pela cintura do pai ou da mãe. Também eu aprendi a trepar à paragem do autocarro, muitas vezes de vestido ou de calções, o ferro queimava um pouco o lado interior das minhas pequenas pernas e fazia-me bolhas nas palmas das mãos; mazelas inevitáveis da rebeldia de quem cresce na rua.

Nunca trepei às árvores mas tornei-me especialista em subir às paragens de autocarro e saltar do topo para o chão sem partir sequer as canelas. Só rachei uma vez a cabeça e foi num movimento nada arriscado: tropecei ao subir o passeio, precisamente nesse largo das paragens, onde fazia coisas muitíssimo mais arriscadas.

Além de treparmos pelas paragens de autocarro, jogávamos à bola e andávamos a toda a velocidade à volta do largo com as nossas bicicletas, recentemente sem rodinhas de apoio. Era raro o dia em que não esfolávamos os joelhos no alcatrão e que a nossa avó não vinha gritar à varanda que dava para o largo: "Seus desgraçados, venham para casa! Ainda se matam! Ou se morrem ainda apanham por cima!"

No tempo em que eu e os meus primos lanchávamos juntos na bancada da cozinha e nos lambuzávamos com pão barrado com manteiga Planta, mais manteiga do que pão, e tínhamos orgulho de ser os únicos na zona, quiçá no mundo, a trepar às paragens de autocarro, um sentimento de sermos equilibristas e invencíveis.

Sugerir correcção
Comentar