O ataque em curso contra os meios de comunicação social públicos

Mesmo na Europa, um continente que se orgulha de ser o berço dos meios de comunicação social públicos, a proliferação de media que são editorialmente controlados é preocupante.

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Em Abril, o Twitter, de Elon Musk, suscitou críticas quando classificou vários meios de comunicação social públicos, entre os quais a National Public Radio (NPR) nos EUA, a BBC no Reino Unido e a CBC do Canadá, como “afiliados ao Estado” ou “financiados pelo governo”. Estes meios de comunicação, financiados por fundos públicos e com independência editorial, responderam de forma veemente, reduzindo – ou, no caso da NPR, cessando – a actividade na plataforma.

O Twitter acabou por remover estes rótulos controversos, mas, ao mesmo tempo, retirou rótulos semelhantes de canais como a RT, da Rússia, e a Xinhua, da China, que nunca se escusaram a assumir a sua identidade de canais de propaganda governamental.

Contudo, a surpresa no caso do Twitter não foi a falta de uma política coerente de classificação, mas sim a confusão sobre a missão de serviço público por parte da comunicação social. Ao colocar a RT e a Xinhua no mesmo grupo da Rádio e Televisão de Portugal (RTP), da NPR e da BBC, o Twitter não reconheceu a marca que distingue a comunicação social controlada pelo Estado da comunicação social pública: a independência editorial. A Xinhua, por exemplo, foi criada para disseminar mensagens aprovadas pelo governo em nome do Partido Comunista Chinês (PCC). A BBC, pelo contrário, é protegida por estruturas que impedem a intervenção de políticos no seu processo de decisão editorial.

Infelizmente, as diferenças claras, que anteriormente eram óbvias, entre os meios de comunicação social controlados pelo Estado e os de propriedade pública têm vindo a esbater-se nos últimos anos, quer por ataques provenientes de políticos, que se insurgem contra a informação crítica, quer pela comunicação social privada, que, em muitos países, tem procurado desestabilizar os modelos de governação e de financiamento da comunicação social pública.

Este facto tem motivado apelos – e até mesmo campanhas, no caso do Reino Unido – para que se reduza o espaço da comunicação social pública independente. De acordo com os dados recolhidos em 2022 pelo State Media Monitor, um projecto de investigação que abrange 157 países, cerca de 84% dos 595 meios de comunicação social públicos e estatais em todo o mundo carecem, actualmente, de independência editorial.

Dos 102 meios de comunicação públicos que têm independência editorial, dois terços situam-se na Europa, América do Norte, Austrália e Nova Zelândia. Em vastas áreas do Médio Oriente e do Norte de África, da África subsariana e da Ásia, nunca houve um meio de comunicação social público independente.

Na Europa, 51% de todos os meios de comunicação social públicos e estatais têm independência editorial – uma concentração significativamente mais elevada em comparação com outras regiões do mundo. No entanto, para um continente que se orgulha de ser o berço dos meios de comunicação social públicos, a proliferação de meios de comunicação social que são editorialmente controlados é preocupante.

Esta situação é particularmente evidente em grande parte da Europa de Leste, onde a experiência de transformar antigos meios de comunicação estatais em meios de comunicação públicos independentes começou na década de 1990, com a queda do comunismo. A dimensão do seu fracasso, no entanto, pode ser testemunhada na BNT da Bulgária, na MTVA da Hungria, na TVP e na Polskie Radio da Polónia, bem como na RTS da Sérvia, que servem todas de porta-vozes das administrações governamentais dos respectivos países. As únicas excepções, por se tratar de organismos de radiodifusão de serviço público verdadeiramente independentes nesta região, são a rádio e a televisão públicas da República Checa e o organismo de radiodifusão LRT da Lituânia.

Ainda assim, mesmo nos casos em que os meios de comunicação social públicos adquiriram independência editorial, existem vulnerabilidades. O organismo público de radiodifusão da Eslovénia, a RTVSLO, por exemplo, travou uma luta feroz com o antigo primeiro-ministro populista do país, Janez Janša, sobre os órgãos de governação do organismo de radiodifusão. Esta táctica é habitualmente utilizada pelas administrações políticas da região – incluindo as de Viktor Orban, cujos aliados controlam actualmente o NMHH, o Conselho dos Meios de Comunicação Social da Hungria – para controlar os meios de comunicação social públicos. No entanto, graças a uma decisão do tribunal no passado mês de Maio, as operações da RTVSLO são agora designadas em conjunto por grupos da sociedade civil e pela equipa que a integra, e não pelo parlamento – uma medida que deverá defender a autonomia da emissora.

Os ataques aos meios de comunicação social públicos também estão a tornar-se comuns na Europa Ocidental. No Reino Unido, um movimento de direita tem estado a levar a cabo uma campanha para retirar financiamento à BBC. O organismo nacional de radiodifusão do Reino Unido é financiado através de uma taxa que todos os agregados familiares britânicos são obrigados a pagar. O actual governo, liderado pelos conservadores, está a considerar a possibilidade de rever o mecanismo de financiamento baseado na taxa audiovisual, mas os especialistas, de todos os quadrantes do espectro político, alertaram para o facto de a eliminação deste modelo poder desestabilizar a estação e pôr em risco a sua independência.

Do modo semelhante, na Áustria, a ORF, que foi criada como um organismo público de radiodifusão independente através de um referendo realizado na década de 1960, enfrenta actualmente uma crise provocada pelo aumento da pressão política e por uma reforma do financiamento que lhe pode vir a retirar os montantes provenientes da taxa audiovisual a partir de 2024.

Também em Itália, a emissora pública RAI, historicamente sujeita a interferências do seu conselho de administração, viu o seu director executivo demitir-se devido a "divergências políticas".

É verdade que os organismos públicos de radiodifusão têm de se adaptar aos novos tempos e ajustar a sua oferta, sobretudo se quiserem atrair o público mais jovem. E, para o conseguirem, terão de ajustar os seus modelos de financiamento e as suas estruturas de governação, de modo a proporcionarem ao seu público uma influência maior na decisão sobre a programação e a poderem competir no ambiente digital.

No entanto, para que essa transição seja bem-sucedida, serão necessárias salvaguardas contra a influência política e a instabilidade do mercado ao longo do percurso. Em muitos países, estamos a falar de organismos de radiodifusão que são os únicos a defender sólidas orientações editoriais. São estes meios de comunicação imparciais que estão em melhor posição para fazer frente à desinformação e aos esforços políticos para degradar o ambiente da comunicação social. É certo que estes precisam de reformas, mas também carecem de apoio.

Numa era de mentiras, a RTP, a NPR, a BBC e outros órgãos de radiodifusão independentes constituem uma fonte noticiosa de valor incalculável, livres de preconceitos ou de distorções, para milhões de cidadãos. Se não reconhecermos e defendermos o seu estatuto único, assim como valor que têm para a sociedade, a nossa democracia entrará num declínio ainda maior.

Marius Dragomir é director do Media and Journalism Research Center, um think thank centrado no estudo dos meios de comunicação social, do jornalismo, da política e da tecnologia

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