Carlos Cortes: “Tenho a pior impressão do que está a ser feito pela direcção executiva do SNS, porque está a ser feito na sombra”

O bastonário Carlos Cortes lamenta a ausência de comunicação sobre o que está a ser feito e afirma que sobrecarregar os médicos não vai resolver o problema das urgências.

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O Verão ainda não tinha chegado e já os hospitais enfrentavam dificuldades nas urgências por causa da falta de médicos. Na área da obstetrícia, são várias as maternidades com urgências e blocos de partos encerrados; na pediatria o cenário não é muito diferente. “Não podemos sistematicamente achar que sobrecarregando os profissionais de saúde com urgências sucessivas vamos conseguir resolver o problema”, diz o bastonário da Ordem dos Médicos em entrevista ao PÚBLICO e à Rádio Renascença.

A Procuradoria-Geral da República pediu ao Tribunal Constitucional que considere inconstitucional o diploma que estabelece o pagamento das horas extraordinárias. Se acontecer, o ministro da Saúde acha que não vai haver profissionais suficientes para garantirem os serviços. Também está preocupado?
Não conheço o parecer que levou a procuradora-geral da República a fazer esse pedido. O que posso dizer é que neste momento os médicos têm uma sobrecarga, muitas vezes até desumana, para fazer urgências. Posso dar um exemplo que é inaceitável, em que temos médicos internos em formação, alguns deles a fazer estágios em Coimbra ou em Lisboa, que estão a ser pressionados para irem fazer uma urgência ao Hospital do Algarve. Temos de começar a ter muito bom senso sobre esta matéria.

Temos de começar a organizar o trabalho em serviço de urgência e ter uma intervenção, porque é verdade que há um problema com a urgência no nosso país. É esse problema que temos de resolver e não podemos sistematicamente achar que sobrecarregando os profissionais de saúde com urgências sucessivas vamos conseguir resolver o problema. O que estamos a fazer, com essa pressão desmedida, é por vezes quase obrigar os médicos a sair do SNS, porque ninguém aguenta fazer várias noites de urgência seguidas.

Como se resolve?
Resolve-se reestruturando o serviço de urgência, o SNS, envolvendo a OM. Devo dizer que tenho a pior impressão, neste momento, daquilo que está a ser feito pela direcção executiva do SNS (DE-SNS). E tenho a pior impressão porque, aquilo que está a ser feito, está a ser feito na sombra. Não sabemos verdadeiramente o que está a ser feito. Acho que era importante o Ministério da Saúde reflectir muito sobre isto, envolver os vários agentes da saúde, a OM, para, em conjunto, tentarmos perceber quais são as dificuldades. Porque tenho ideia de que muitas vezes a DE não percebe exactamente quais são as dificuldades. Para isso tem de ir ao terreno, tem de perceber no dia-a-dia quais são as dificuldades dos médicos nas urgências, o que tem de fazer para assegurar as consultas, para diminuir os tempos de espera para cirurgia e, em conjunto, encontrarmos as soluções para o país.

Portanto, dá nota negativa ao trabalho desenvolvido pela DE-SNS e pelo ministro da Saúde...
Vou colocar as coisas de outra forma: não consigo sequer avaliar, porque não sabemos qual é o trabalho que está a ser desenvolvido. Posso dizer que a DE não entregou o seu relatório de exame para tentarmos perceber se aquilo que está a ser feito é ou não positivo. E se não entregou o relatório de exame, então tem zero. Provavelmente, até é capaz de ter mesmo zero, porque não sabemos aquilo que está a ser desenvolvido. Já era tempo de a DE promover o diálogo com os vários agentes.

Mas há medidas concretas que são conhecidas. A questão dos blocos de partos, das urgências pediátricas. Concorda com o modelo encontrado?
São medidas de remendo que não têm durabilidade. Aquilo que temos de ter é um sistema reformado, em conjunto e em diálogo com as outras organizações. Fala-se muito de uma coisa que parece que é concreta, mas não é: as unidades locais de Saúde (ULS). Aliás, a DE-SNS fala de uma coisa que é um mistério para mim, que são as ULS 2.0. Tentei perceber o que são, ninguém sabe o que são. E era muito importante a DE explicar o que quer fazer com as ULS.

Isto é algo de absolutamente estratégico para o país, porque percebemos que há uma reforma em curso — que não é assumida, mas está a acontecer —, que é substituir todos os hospitais e agrupamentos de centros de saúde (Aces) e agrupá-los em ULS. Nada tenho contra as ULS, mas também não tenho nada a favor. Porque não há propriamente evidência, neste momento, que seja um bom sistema.

Nós temos ULS que funcionam relativamente bem, existe uma ou duas, mas infelizmente os hospitais e o Aces que têm mais dificuldades no país, curiosamente, estão inseridos em ULS. Portanto, se há neste momento ULS 2.0, como afirma a DE, gostaria muito de saber exactamente qual é a diferença que nos possa levar a acreditar e a confiar neste modelo. Quero muito que a OM possa ajudar o país a ter aqui uma resposta diferente e melhor. Mas, para isso, o Ministério da Saúde e a DE têm que saber fazer algo que não têm feito, que é dialogar e saber colaborar.

Têm apontado o problema das condições de trabalho. Têm sido entregues muitas escusas de responsabilidade?
Esses documentos são fundamentalmente um sinal de alerta para o que não está a correr bem. E o que dizem? Com as condições que temos neste momento, não conseguimos oferecer uma prestação de cuidados de saúde de qualidade e com segurança. São um sinal de alerta e de alarme para as instituições e para o Ministério da Saúde. Aquilo que convido é o poder político a não pôr aquilo na gaveta, como tem feito, mas a tentar perceber efectivamente quais são estas dificuldades. E sobretudo ajudar a resolvê-las.

Quantas declarações já foram entregues este ano?
Não sei dizer exactamente quantas foram entregues, mas posso dizer que todas as semanas recebemos dezenas.

O conselho disciplinar é muitas vezes acusado de demorar demasiado tempo a avaliar denúncias de alegadas más práticas ou negligência médica. No caso das denúncias da alegada má prática no hospital de Faro, dois cirurgiões foram suspensos preventivamente ainda antes de a comissão de peritos ter chegado a conclusões. A que se deve esta decisão?
O que a OM fez foi accionar um conjunto de dispositivos para analisar o caso de Faro. Um deles é o conselho disciplinar da Secção Regional do Sul. Outro, o colégio da especialidade de cirurgia-geral e o terceiro, que na altura entendemos que seria importante criar, uma comissão técnico-científica de peritos. O trabalho da comissão não é apresentar nenhuma conclusão, é fazer um levantamento e apurar factos de forma exaustiva.

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Carlos Cortes, bastonário da Ordem dos Médicos MATILDE FIESCHI

Esse trabalho ainda não terminou...
Esse trabalho está a ser feito, com grande rigor, responsabilidade e empenho. Como também respeito o trabalho do conselho disciplinar, que é independente do bastonário. É um tribunal autónomo.

Mas porque é que decidiram suspender preventivamente os médicos?
Não tenho acesso ao processo. O processo está no âmbito do conselho disciplinar. Houve aqui matérias relevantes, indícios que levaram a que houvesse uma medida de precaução. Essa medida é a suspensão destes médicos por um período, neste caso de seis meses, até que se possam apurar com mais rigor todos os factos. E foi isso, penso eu, que levou a esta decisão do conselho disciplinar do Sul.

No caso da morte de uma grávida que foi transferida do Hospital de Santa Maria para o Hospital de São Francisco Xavier, porque é que só agora o inquérito foi aberto?
Agora houve um relatório da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde, que muito concretamente nos disse que havia aqui envolvimento médico. A partir daí, a obrigação da OM é imediatamente remeter o processo para avaliação do conselho disciplinar, que, no âmbito das suas competências, terá que avaliar o processo à luz das leges artis e do código deontológico.

Recentemente criticou uma orientação da Direcção-Geral da Saúde (DGS) sobre a assistência ao parto normal passar a ser feita por enfermeiros especialistas e pediu sua a revogação. Há novidades sobre o processo?
Não critiquei propriamente a orientação. Critiquei o processo, porque não foi bem conduzido. Não teve a participação integral da Ordem dos Médicos, como em qualquer processo normal. A Ordem dos Médicos não aceita esta orientação, já pediu à DGS para a rever. Tanto quanto me foi dito, muito recentemente, vai ser revista. O processo vai ter uma configuração totalmente diferente, que respeite todos os intervenientes. E aqui a OM não foi respeitada do ponto de vista técnico. E se os processos da DGS forem conduzidos desta forma, então a OM não tem disponibilidade para continuar a participar nas comissões de trabalho da DGS.

Não sentiu que foram ouvidos?
A OM não foi ouvida e as opiniões da ordem dos médicos não foram consideradas. E, portanto, o processo não foi regular. Todos os elementos indicados pela OM mostraram vontade em sair dessa comissão. Saíram dessa comissão. Não gosto muito de olhar para o passado. Quero olhar para o futuro. Há aqui condições, segundo aquilo que nos foi transmitido pela DGS, de rever completamente essa orientação.

Se não for revista, a OM não irá colaborar mais em grupos de trabalho da DGS?
Não. Ela tem de ser revista. Mas a OM está a fazer uma reflexão sobre a forma como temos que desenvolver um trabalho que é muito importante. A DGS tem um trabalho importantíssimo, que a OM respeita muito e no qual muitas vezes participa e quer continuar a participar. Mas tem que haver regras, uma colaboração leal entre as duas organizações. Da parte da OM, há toda a disponibilidade para colaborar e para existir essa lealdade.

Para ficar claro, se orientação não for alterada, o que é que acontece?
Eu quero é que o processo corra de forma normal. E há aqui procedimentos que são importantes: que as reuniões sejam convocadas de forma adequada, que todas as pessoas sejam notificadas dessa convocatória e, no final, antes de a orientação ser publicada, tem que ser validada por todos os elementos da comissão. E isso não aconteceu.

Uma vez que já foi publicada, o que acontece agora, se não for revogada?
Se não for revogada, a OM vai considerar poder rever a sua participação nas comissões de trabalho da DGS. Isso já foi explicado, até publicamente.

A lei da eutanásia está aprovada. Já disse que não vai nomear um representante da OM para a comissão que avalia os procedimentos clínicos da morte medicamente assistida. Mantém essa posição?
É a posição pessoal do bastonário da OM. Fui muito claro: eu não irei nomear nenhum representante. Agora, há um enquadramento legal que estamos a avaliar, há uma regulamentação que tem de ser desenvolvida e avaliada pela OM, que terá, nesse momento, a sua intervenção. Como bastonário, não irei fazer essa nomeação.

Vai dar alguma orientação, como pedem algumas personalidades, para que os médicos não aceitem praticar a eutanásia?
Não estou a pensar dar nenhuma orientação nesse sentido. Houve um momento em que o bastonário se pronunciou sobre essa matéria. Estou agora à espera de ser notificado para nomear um elemento. Nesse momento, a Ordem dos Médicos tomará sua posição.

Tem noção de se há muitos médicos a inscreverem-se como voluntários na Jornada Mundial da Juventude (JMJ)?
Tivemos uma reunião com a organização da JMJ. Foram-nos apresentados vários aspectos de apoio médico e de apoio de enfermagem. A Ordem dos Médicos ofereceu-se para fazer uma campanha de divulgação junto dos seus associados, para eles poderem ser voluntários.

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MATILDE FIESCHI

Tem ideia de número de voluntários já inscritos e de quantos é que serão necessários?
Não tenho uma ideia muito concreta. Penso que serão à volta dos 300. A organização é que poderá confirmar esses dados. Ainda faltam alguns médicos para completar o número desejável. Do ponto de vista da OM, aquilo que a organização das JMJ está a fazer, está a ser bem feito.

Mas em relação ao plano de saúde, parece-lhe que está tudo garantido para prestar assistência na eventualidade de haver um acréscimo de procura?
Em relação a essa matéria, defronto-me sempre com a opacidade que temos sentido junto do Ministério da Saúde nessas questões. O plano não foi comunicado à OM. Talvez o Ministério da Saúde entenda que nem sequer tinha que ser comunicado. Mas, da mesma forma que estamos a dar o nosso contributo à organização da JMJ, a OM também podia, e está disponível para isso, dar o seu contributo ao Ministério da Saúde no âmbito desta jornada. Esse contributo, obviamente, tem que ser solicitado.

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