P24. “Há uma grande intromissão do Ministério das Infra-estruturas em actos de gestão corrente das suas empresas públicas”

Leia aqui a transcrição do episódio do P24 desta terça-feira com Carlos Cipriano.

Por despacho ministerial datado de 21 de Abril, o ministro João Galamba mandou classificar um vasto conjunto de documentos que fazem parte do Sistema de Gestão de Segurança da IP, numa decisão inédita e que não tem paralelo noutros países. Neste P24 ouvimos o jornalista do PÚBLICO Carlos Cipriano.​

Transcrição completa do episódio:

Ruben Martins: Do PÚBLICO, este é o P24. Hoje: As intromissões governamentais em actos de gestão corrente das empresas públicas.

A transparência nem sempre é uma constante entre as administrações públicas ou governos, com prejuízos para todos. O escrutínio por parte dos jornalistas pode inclusive deixar muito irritados os escrutinados. E desta vez foi ao ponto de se ter classificado um vasto conjuntos documentos a que já muitos tinham acesso.

Foi isso que aconteceu ao jornalista do PÚBLICO Carlos Cipriano quando insistiu, por várias vezes, em ter acesso aos documentos do Sistema de Gestão de Segurança do gestor de infra-estruturas ferroviárias IP.

Perante a insistência no acesso aos documentos, o ministro com a pasta das infra-estruturas, João Galamba, assinou o despacho a classificá-los como segredos de Estado. Problema resolvido, talvez tivesse pensado o ministro.

Eu sou o Ruben Martins e hoje, comigo, o jornalista do PÚBLICO Carlos Cipriano:

Carlos Cipriano, nesta segunda-feira, trazes a notícia de que o Ministro das Infra-estruturas, João Galamba, resolveu classificar uma série de documentos que fazem parte dos manuais de segurança da Infraestruturas de Portugal (IP), a gestora responsável pela rede ferroviária nacional. Que documentos são estes ao certo e o que é que se passava com estes documentos até este momento em que eles foram classificados?

Carlos Cipriano:
Bom, são documentos que à partida não têm nada para serem considerados um segredo de Estado. São documentos que, pelo menos desde há 50 anos, são documentos normais, habituais, que estão na posse da antiga CP, da REFER, agora da IP. Mas, como fazem parte dos sistemas de alta segurança, são também partilhados pela Protecção Civil e por corporações de bombeiros. Quando tem a ver com questões de obras na via férrea, são também documentos na posse de empreiteiros, de sub-empreiteiros, e que, portanto, nunca, até hoje, foram classificados, porque nunca se percebeu que houvesse aí algum grau de criticidade que se levasse a essa classificação.

Ruben Martins:
E o que é que mudou nestes últimos dias?

Carlos Cipriano:
O que aconteceu foi que o Ministério decidiu classificar esses documentos porque, neste caso, o PÚBLICO pediu acesso a um conjunto de documentos quando tentava perceber o que é que estava a acontecer com o processo que iria levar à autorização de segurança da IP. A IP viu caducar a sua autorização de segurança em 31 de Agosto do ano passado. Voltar a consegui-la implicava um processo burocrático bastante complexo, com a apresentação de uma série de documentos e de requisitos que provassem que a empresa operava de uma forma segura, e isso poderia demorar muitos meses, e na altura o Governo fez força para que se desse uma autorização provisória para que a empresa não estivesse a operar sem essa autorização. Até porque isso teria consequências ao nível da companhia de seguros, se houvesse algum acidente ou alguma coisa do género. E então, um mês e picos depois, a IP obteve a sua autorização de segurança, mas apenas por oito meses, até 31 de Maio. E num determinado momento, resolvi tentar perceber se a partir de 31 de Maio, efectivamente, teria autorização de segurança para os próximos cinco anos, como é da lei, ou se o processo estava atrasado, e portanto, quis saber como é que estava o processo. E como fiz muitas perguntas... se calhar eu tentei saber demasiadas coisas, não sei, eu tentei entre várias coisas perceber como é que estava no lado do Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT), porque o IMT, que é a autoridade de segurança ferroviária, concede essa autorização de segurança. Tentei aceder, nomeadamente, à matriz de análise dos requisitos para o processo de autorização. E foram-me sempre recusando isso. E a resposta que foi dada foi que não podia aceder a esses documentos porque tinham sido classificados. O timing em que eu faço o pedido e em que os documentos são classificados por despacho do senhor ministro coincidem perfeitamente. Ou seja, aquilo foi a solução de recursos que o Ministério obteve para impedir o acesso aos documentos. E portanto, apesar do Ministério vender a ideia que a iniciativa partiu da IP e que foi a IP que pediu, eu não estou nada convencido disso. Sei que isso não é verdade, foi efectivamente o Ministério que tomou essa iniciativa e agora pôs a IP a dizer que tinha sido sua iniciativa.

Ruben Martins:
É que nesta segunda-feira chegou um comunicado às redacções que, no fundo, tenta desmentir aquilo que tinhas escrito nesta segunda-feira. Tu escreveste que o vice-presidente das IP, que tem a responsabilidade do transporte ferroviário, não tinha solicitado essa classificação dos documentos e neste comunicado que tivemos umas horas depois de a tua notícia sair, o ministério, através de um comunicado que foi enviado pela IP, disse que foi a própria IP que quis classificar os documentos. Quem é que está a dizer a verdade aqui, Carlos?

Carlos Cipriano:
Obviamente que o IP não vai contrariar a tutela, não é? Portanto, a IP fará aquilo que a tutela diz. O que eu disse sobre o vice-presidente da IP foi que ele, mas várias vezes em que falei que eu desconhecia o processo, não sabia de nada. Inclusive, tive a preocupação de perguntar à IP se a administradora do Conselho de Administração que tem a tutela da segurança se tinha autonomia suficiente para poder decidir estas coisas sem passar pelo Conselho de Administração. Não me responderam, mas é mais do que óbvio que decisões desta natureza que levam à classificação de documentos como sendo segredos de Estado, teriam necessariamente de passar pelo Conselho de Administração da IP. E portanto eu continuo sem quaisquer dúvidas de que a decisão partiu do Ministério e que depois veio dizer que foi a IP. Quer dizer, esta história de que agora os gestores de infra-estrutura estão preocupados com a segurança por causa da Guerra da Ucrânia, quer dizer, a Guerra da Ucrânia já tem um ano, não é? Agora, o que me parece particularmente grave nesta história é que, e agora a crer que tinha sido a IP que pediu a classificação de documentos, é que estava também a pedir a classificação de documentos do próprio IMT, uma outra estrutura. Ora, a autoridade nacional de segurança não tem que receber ordens da IP a dizer que "classifica lá esses documentos". E portanto, o IMT, como disse, recebeu a informação que o Ministério, por despacho ministerial, que os documentos tinham ficado classificados.

Ruben Martins:
Carlos, na prática quais é que são as consequências disto? Porque há pessoas que têm documentos que de um momento para o outro foram classificados. E agora?

Carlos Cipriano:
E essas pessoas agora incorrem num crime sem saberem. Porquê? Porque foram classificar documentos que são tão banais, que não se justificavam que fossem classificados. Todas as pessoas que têm acesso a esse documento, desde corporações de bombeiros, empreiteiros, etc. terão que, a partir de um determinado momento, ter autorizações necessárias para poder ter esses documentos. Ora, essa confusão seria tão grande, o próprio IMT diz que estava a guardar informação da IP para saber como é que iria resolver esse problema, de quantas pessoas é que poderiam aceder a esses documentos, porque eles depois não podem estar acessíveis a todos os quadros das várias instituições. Tem que ser secretos, tem que estar só acessíveis a um conjunto de pessoas que estariam autorizadas, não é? E portanto, a confusão é tão grande que, sem surpresa, o ministro João Galamba já fez um despacho e começou a desclassificar a grande parte desses documentos. Portanto recuou porque de facto isso era insustentável.

Ruben Martins:
Isto vai um pouco além deste caso em si, eu sei que por várias vezes que se tu tentas obter informação da parte das várias entidades ligadas ao sector ferroviário, a área a que mais te dedicas, e eu gostava de perceber se esta opacidade tem sido comum e se é comum só mais recentemente, ou se é algo que está em intrínseco ao sector ferroviário.

Carlos Cipriano:
Falando pelo sector ferroviário, creio que é algo que está intrínseco. Repara numa coisa, quaisquer pergunta que eu faça à CP e à IP são respondidas pela CP e pela IP, mas depois vão ao ministério para serem validadas. Quer dizer, isto contraria qualquer grau de autonomia das empresas públicas. Se fosse administrador da CP ou da IP, eu não gostaria de ser tão desautorizado. Ou seja, se o meu serviço de comunicação, que tem os directores em quem eu confio, responde aos jornalistas, por que motivo a resposta tem que subir à tutela para ser validada? E isto é uma grande intromissão, digamos assim, por parte do ministério e do Governo, em actos de gestão corrente das suas empresas públicas, que deveriam ser considerados enquanto tal: actos de gestão corrente. Responder aos jornalistas, responder às perguntas que os jornalistas fazem. Mas não, tudo isto é embrulhado num pacote, sobe à tutela, e o Ministério tem que validar ou alterar as respostas para depois serem novamente enviadas para os jornalistas. Opacidade ou no mínimo alguma falta de transparência. Não é saudável para a democracia que isto aconteça, porque depois cria pequenas tensões entre os jornalistas e as empresas, quando deveria haver um espírito colaborativo entre a comunicação social e as empresas, que, ainda por cima, são públicas. Mas repara que não é só com este Governo. Eu nos últimos 20, 30 anos tenho assistido a esta história com inúmeros governos e de várias cores políticas. Quer dizer, esta tentação de controlar a informação é inevitável, é quase congénita.

Ruben Martins:
Obrigado, Carlos.

E hoje em destaque no PÚBLICO: os senhorios que vão ter uma redução de IRS se descerem o valor das rendas. A proposta de alteração do Partido Socialista ao programa "Mais habitação" prevê um recuo de cinco pontos percentuais na taxa de IRS a quem faça uma descida idêntica nos novos contratos.

E ainda os exames nacionais: nesta segunda-feira foi dia de Português no ensino secundário. Hoje é dia de Geografia e História e Cultura das Artes.

Com música original de Ana Marques Maia, Carlos Cipriano como convidado, eu sou o Ruben Martins e este foi mais um P24 na semana em que vamos chegar aos mil episódios. Está quase!

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