Arbitrariedades reitorais: o nepotismo democrático universitário

A verticalização do poder no ensino superior explica a inexistência de apontamento formal e oficial de crítica ou apoio à atuação do reitor da Coimbra quanto ao despedimento do professor russo.

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O recente caso do despedimento sumário do diretor do Centro de Estudos Russos da Universidade de Coimbra, Vladimir Pliassov, trouxe à luz do dia uma realidade que permanece invisível, silenciosa e silenciada nas universidades portuguesas: a das arbitrariedades reitorais. A Lei n.º 62/2007, de 10 de setembro, vulgarmente conhecida como Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior, ou mais economicamente RJIES, que finalmente se encontra em revisão, veio consagrar a hierarquia das instituições de ensino superior (IES) com base na sua organização e estruturação em cargos unipessoais, os diretores e presidentes (de cursos, de áreas, de departamentos, de centros, de escolas...) alinhados à figura de topo, o reitor. Os órgãos colegiais que existem, de eleição por representação por corpos, têm sobretudo funções de teor consultivo ou eleitoral, abstendo-se muitos deles da sua função fundamental de supervisão dos atos do reitor, no caso dos conselhos gerais, ou dos diretores e presidentes, no caso dos conselhos de escola.

É esta verticalização do poder nas IES que explica, por exemplo, pelo menos em parte, a inexistência de qualquer apontamento formal e oficial de crítica ou apoio à atuação do reitor da Universidade de Coimbra, relativamente ao despedimento do professor russo, por parte do conselho geral da Universidade de Coimbra. É ela também que explica o comportamento semelhante do Conselho de Escola da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa relativamente à intervenção da PSP na escola em 12 de novembro de 2022, solicitada pelo diretor, para expulsão e detenção dos estudantes ativistas pelo clima. Em ambos os casos, temos órgãos cuja política institucional é apática e meramente ressoadora e de suporte das ações do reitor, num caso, e do diretor, no outro.

O pendor acrítico e inerte destes órgãos colegiais – que, tendo o poder de eleger os cargos unipessoais de topo, reitor e diretores/ presidentes de escolas, têm também o poder, pelo menos teórico, de os destituir – permite e legitima o exercício de todo o tipo de arbitrariedades. É quase como se o propósito fundamental destes órgãos e das suas energias fosse apenas garantir a própria reprodução do sistema e, portanto, aligeirar a manutenção do domínio e o exercício do nepotismo ideológico de cumplicidades de classe, de credo, ou de emoção, e regular a ascensão e as dependências hierárquicas, o tráfico de favores.

Como figura de topo das universidades, o reitor goza de um estatuto de imunidade que encontra na prerrogativa do exercício de homologação o exemplo máximo da arbitrariedade de execução do seu papel como “órgão superior de governo”. Por meio da homologação, o reitor aprova, ratifica ou confirma certos atos particulares realizados nas diferentes faculdades da sua universidade ou na própria reitoria investindo-os de força executória ou validade jurídica. A homologação, e com ela, significativamente, a não homologação são assim postas ao serviço da arbitrariedade e do exercício autocrático do poder hierárquico de manutenção do statu quo. Assim se explica a quase inexistência de casos de não homologação de resultados de procedimentos concursais de preenchimento de vagas de pessoal docente, mesmo quando há claramente violação da lei em tais procedimentos.

Alguma coisa está profundamente errada quando um reitor, invocando a impossibilidade de interferência na autonomia científica de um processo de recrutamento de docentes, se demite do exercício da sua autoridade e aconselha queixosos a impugnar judicialmente nos tribunais os seus despachos de homologação de concursos. É evidente que este reitor o faz no conhecimento i) da morosidade dos tribunais; ii) da dificuldade que os juízes do tribunal administrativo invocam para decidir em matérias que acham ser científicas; e iii) do papel dissuasor dos dois aspetos anteriores na mente dos queixosos. E ainda porque sabe que, quando o resultado da ação interposta no tribunal administrativo sair, já ele não será reitor nem lhe será imputada nenhuma responsabilidade no processo.

Neste exercício de aplicar a prorrogativa de homologação ou não homologação, os reitores são coadjuvados por gabinetes jurídicos que incorporaram no seu funcionamento os piores vícios do “funcionalismo”: servir as vontades do seu senhor e nada mais. Nesse sentido, e dado o alheamento da realidade que professam, assemelham-se aos três macacos sábios japoneses: não veem o mal, não ouvem nenhum mal, nem falam mal. Ou seja, fazem vista grossa e emitem pareceres jurídicos a la carte, que são muitas vezes risíveis e de consequências nefastas para o funcionamento das IES.

Esta inércia reitoral, apoiada em pareceres jurídicos que só servem para assegurar o sossego do reitor até ao fim do seu mandato e encher os tribunais com processos, acarreta que as universidades estejam permanentemente a contratar escritórios de advogados para as representar em tribunal e para fazer sucessivos recursos de cada vez que são condenadas. É um exemplo de uso desregrado dos recursos públicos só para poupar os reitores.

No entendimento dos reitores, e dos seus gabinetes jurídicos, há atos particulares que não podem deixar de homologar, como os casos dos referidos concursos de pessoal docente, em defesa do princípio da não ingerência na autonomia científica das escolas (porque o reitor é o órgão superior de governo e de execução, desde que a execução não seja científica). Mas há casos que podem claramente não homologar, se dessa não homologação resultar o benefício dos seus acólitos, mesmo que a não homologação seja uma interferência na autonomia das escolas. Alguma coisa está profundamente errada quando um reitor escolhe, por exemplo, não homologar os resultados das eleições realizadas numa certa escola, sem qualquer justificação legal e contra o parecer final da comissão eleitoral. É evidente que o faz no respaldo do exercício da sua arbitrariedade reitoral, apenas com o objetivo de manutenção do statu quo que o resultado eleitoral indesejado vinha desafiar. E fazendo-o, interferiu na vida da escola e na sua autonomia.

Viver nas adversidades da existência ou abandonar-se ao nada era o grande dilema shakespeariano em Hamlet, com a célebre frase “Ser ou não ser, eis a questão”. Para os reitores portugueses, este dilema não está no binómio ser ou não ser, homologar ou não homologar, mas na escolha entre manter ou não manter o statu quo e o nepotismo instalado. E porque a escolha é a defesa do nepotismo, umas vezes homologa-se, porque homologar significa impossibilitar a mudança, e outras não se homologa, porque é não homologar que impossibilita a mudança. Há uma outra expressão que designa tudo isto. Essa expressão é corrupção do governo democrático, mas longe de mim estar a querer dizer que a corrupção reina nas IES e que o RJIES a facilita.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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