O Coração Ainda Bate. O valor do esforço

Inês Meneses escreve sobre as pontes para o amor.

Lembraram-me há dias da importância do intermediário nessa ponte difícil que, às vezes, é o amor. O intermediário é aquele que vem de boa-fé dizer que o amigo ou a amiga gosta de nós. Vem "a mando de", ainda que se voluntarie para tal. Às vezes, o intermediário também tem um fraquinho por nós. Pode acontecer. Tenta conquistar pontos nessa aproximação. Aguarda com ansiedade voltar ao ponto de partida com más notícias. Ao intermediário deve ser reconhecido o valor do esforço. As suas intenções não serão para aqui chamadas.

Pensei, inicialmente, que este papel (do que faz a ponte) seria algo que só poderia ter existido na remota infância, mas cheguei aos dias de hoje lembrando-me de que, ainda adultos, tentamos juntar pessoas, amigos e amigas, gente a quem a sorte nunca bateu à porta, muito menos ao coração. A pouca sorte é tão relativa que me recuso a usar esta expressão. Às vezes, ficamos de cabeça para baixo, e outras, de braços para cima. É mais ou menos isto a vida.

Lembro-me perfeitamente do primeiro intermediário que cruzou o meu caminho. Vinha prestar um serviço sem proveito próprio. Era o amigo dele, João Paulo, que gostava de mim e mandava uma fotografia para me conquistar. Gesto audaz, este. É impossível esquecer-me do momento em que, com os meus dedos pequeninos a tremelicar, recolhi a fotografia enviada. Um tesouro escondido na carteirinha onde guardei a primeira semanada de 20 escudos. Nessa altura, 20 escudos davam para comprar quatro carteirinhas de cromos ou dois pacotes de batatas fritas no bufete da escola. Era assim que dizíamos: “Vamos ao bufete.” E íamos. 20 escudos também davam para dois pacotes de bolachas de baunilha. Aqueles blocozinhos doces que se assemelhavam a um sabão. Eu tinha de escolher muito bem os dois momentos da semana em que ia ao bufete. Talvez o primeiro fosse logo à segunda-feira.

Penso que Carlos era o nome do intermediário. Um rapaz mais velho e muito desembaraçado, cabelo preto-carvão liso e uma tez morena com traços bem desenhados. “O João Paulo manda dizer que gosta de ti.” E com ar muito seguro dele, emanando a confiança que talvez João Paulo não tivesse, estendeu-me a fotografia do meu pretendente. À carteira vazia que já pedia a nova semanada (gasta em dois pacotes amarrotados) juntei a fotografia do João Paulo. A história não teve um final feliz, mas talvez por isso a recorde com tanta nitidez até hoje.

Desta vez é o intermediário que ganha destaque aqui. Porque os intermediários vão-se repetindo vida fora, refinando depois a abordagem. São os tais amigos que, por compaixão, fazem um jantar, ou aqueles que, tantas vezes palco de lamentações várias, decidem (até para se pouparem) dar largas à imaginação lembrando-se daquela amiga que podia perfeitamente combinar com o desamparado do momento.

Vamos sendo intermediários, mas não com o mesmo encanto da infância. Esse encanto está agora personificado em Carlos, o rapaz que avançou destemido ao encontro da rapariga em quem ninguém poderia reparar. Eu era a rapariga. Só me via a partir de dentro e, portanto, não existia para os outros. Achava que não.

Os Carlos de que precisamos já não entregam fotografias nem, como aconteceu nesta história curta, levam a nossa. Sim, porque também eu mandei pelo intermediário o meu retrato a preto e branco como se dissesse que sim ao esmerado pretendente. E agora pensemos na utilidade do intermediário: poupa vergonhas para quem ache que o amor nos expõe a elas. Na verdade, o amor é um jogo de onde nem sempre podemos sair ilesos. Receber um não rente à cara não devia ter o peso que lhe atribuímos. É só um não dos muitos que vamos ouvir vida fora. É claro que um intermediário como aquele que conheci em 1980 já não se repete. Já não mandamos dizer por ninguém de quem gostamos. Aliás, há quem já nem sequer sinta necessidade de se despedir depois de se ter apresentado. Parece que o tempo é curto para despedidas e mais bem aplicado em novas apresentações. E assim seguimos no mundo descartável. Estamos tão longe do intermediário como eu desse ano em que descobri o amor.

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