Atum enlatado: uma iguaria que pode ter um preço humano elevado, acusa relatório

Relatório denuncia casos de tráfico humano e trabalho forçado na indústria pesqueira na Ásia e América do Sul. A produção de atum enlatado sem transparência pode ter um custo social elevado.

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Relatório denuncia graves infracções dos direitos humanos contra os trabalhadores na produção do atum enlatado,Relatório denuncia graves infracções dos direitos humanos contra os trabalhadores na produção do atum enlatado Mauroof Khaleel/GettyImages,Mauroof Khaleel/GettyImages
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Nas embarcações tailandesas, a tripulação é composta, na sua maioria, por migrantes da Tailândia,Birmânia, Indonésia, Camboja e das Filipinas que aceitaram o trabalho atraídos pela falsa promessa de salários elevados Philippe Gabriel/DR
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O consumo de pescado é uma prática comum e quotidiana na Europa, e Portugal é um dos maiores consumidores de peixe. O atum está entre um dos preferidos pelos Estados-membros da União Europeia, seja fresco, congelado ou enlatado. A escolha pode ser justificada pelo sabor, pelo valor nutricional, por ser prático ou, muitas vezes, pelo preço acessível. No entanto, com que custo social é que este produto chega à mesa de milhares de consumidores?

O relatório Canned Brutality: Human rights abuses in the tuna industry (Violência em lata: os abusos de direitos humanos na indústria do atum, numa tradução livre) publicado recentemente pela Bloom Association uma organização não-governamental dedicada à protecção da biodiversidade marinha em colaboração com a International Human Rights Clinic da Harvard Law School, denuncia graves infracções dos direitos humanos contra os trabalhadores na produção do atum enlatado. O documento tem como foco os países asiáticos em que a situação é mais alarmante, especialmente Taiwan, Filipinas e Tailândia.

A Bloom destaca no relatório que essas infracções ocorrem principalmente nos oceanos Índico e Pacífico e incluem “tráfico de seres humanos, espancamentos, abusos verbais, retenção de salários e condições de trabalho desumanas”. Canned Brutality junta e avalia informações de várias instituições, como a Greenpeace e Human Rights at Sea, que defendem os direitos dos pescadores constantemente afectados por estas práticas abusivas, segundo o documento.

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O crescimento do consumo excessivo e descontrolado de pescado pode ser considerado uma das causas no aumento da pesca ilegal e, consequentemente, da falta de transparência quanto a origem do atum Daniel Rocha

Migrantes deixados à deriva

Nas embarcações tailandesas de pesca, a tripulação é composta, na sua maioria, por migrantes de países como Tailândia, Birmânia, Indonésia, Camboja e Filipinas, que aceitam o trabalho atraídos pela promessa de salários elevados, mas a realidade que encontram é bem diferente. Num relatório publicado em Julho de 2020 pela fundação EFJ, muitos trabalhadores relataram não receber nem mesmo 25% do valor acordado. Os pescadores denunciaram, também, as jornadas de trabalho intermináveis, com mais de 20 horas por dia sem descanso e sem alimento, além de abusos físicos e verbais constantes, assim como falta de condições nos navios.

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Após pescado, o atum é transportado para outro navio para que embarcação continue em alto mar. Depois, desembarca na Tailândia, China ou nas Filipinas Daniel Rocha

“Senti-me com o corpo muito rígido e tive dificuldade em respirar. Quando finalmente abriram a porta, ouvi o capitão a dizer ao resto da tripulação: 'Se ele morrer, basta dizer que foi um acidente e depois atiramos o corpo ao mar'”, relatou um pescador, que foi trancado num congelador por 15 minutos numa embarcação em Taiwan, numa entrevista à fundação EFJ (este documento foi tido como uma das fontes de informação pela Bloom). Dos 71 entrevistados, 92% disseram terem sido alvo de retenção salarial; 82% enfrentaram jornadas de trabalho intermináveis; 34% sofreram abusos verbais; e 24% foram vítimas de abusos físicos.

As denúncias não se restringem apenas aos crimes cometidos contra os pescadores: o relatório aponta também os abusos que as mulheres sofrem na fase de enlatamento do atum.

Depois de pescado, o atum é transportado para outro navio num processo conhecido como transhipment quando a carga do navio pesqueiro é transportada para outra embarcação de modo a permitir que o primeiro continue em alto mar e, então, desembarca possivelmente na Tailândia, na China ou nas Filipinas. Nesses países, “os trabalhadores [da fase de enlatamento], maioritariamente mulheres, sofrem abusos físicos e sexuais frequentes, recebem pagamento insuficiente e em condições semelhantes à escravatura”, destaca o relatório.

As violações não se restringem somente às indústrias asiáticas. Na América do Sul, a cidade de Manta, no Equador, é conhecida como a “capital do atum”, tornando o país o segundo maior produtor desse peixe no mundo e o maior exportador de atum tropical para os Estados Unidos e a Europa. Um relatório de 2022 conduzido pela Seafood Watch plataforma em que é possível consultar a sustentabilidade dos pescados nos EUA apresenta informações que apontam a pesca ilegal, não reportada e não regulada (IUU, na sigla em inglês) no país. E, tal como ocorre na Ásia, termos como “escravatura moderna” e “tráfico de imigrantes” também são apontados no relatório.

Num comunicado sobre o tráfico de pessoas no Equador divulgado pelo Departamento de Estado dos EUA, a indústria pesqueira aparece como um dos sectores para os quais as vítimas são destinadas. Neste caso, além de adultos, há também tráfico de crianças, tanto nascidas no próprio país como traficadas de outros países sul-americanos, como Colômbia, Peru e Venezuela.

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A União Europeia é o maior importador de produtos da pesca Henry Romero

Medidas da União Europeia

A União Europeia (UE) é o maior importador de produtos da pesca e, por isso, definiu como um dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) na Agenda 2030 das Nações Unidas a eliminação, até 2020, de incentivos que contribuíssem para a pesca ilegal. Para esse efeito, a Comissão e o Conselho da União Europeia criaram um “sistema de cartões”, que consiste na restrição dos produtos que podem ser importados para a UE, na sinalização com cartões amarelos ou vermelhos dos países que não são membros da União enquadrados em IUU e na penalização dos Estados que praticam ou apoiam a pesca ilegal. Se um país for sinalizado com o cartão vermelho, todos os Estados-membros da União devem recusar acordos comerciais que envolvam os produtos de pesca provenientes de navios deste país.

De acordo com o Tribunal de Contas Europeu (TCE), apesar de o objectivo não ter sido atingido até 2020, o sistema de cartões mostrou-se eficaz e promoveu mudanças positivas na indústria pesqueira, mas as infracções ainda ocorrem. Cada Estado-membro da UE é responsável pela inspecção de navios que transitam dentro do seu território; sendo assim, as fraudes na declaração de captura tornam-se frequentes. Outro ponto abordado pelo TCE é a disparidade no valor das multas, havendo uma variação de 200 a 7000 euros. Num comunicado de imprensa publicado em 2022, o Tribunal de Contas afirma ainda que “as penalizações não são suficientemente dissuasoras para impedir a pesca ilegal, por não serem proporcionais ao benefício económico retirado das infracções”.

Para a Bloom, o sistema é ineficaz no que se refere aos Direitos Humanos por não serem “os direitos dos trabalhadores considerados parte das medidas contra a pesca IUU”. E, sobre a indústria pesqueira da Tailândia, o relatório acrescenta que, “embora a UE tenha emitido um cartão amarelo para a Tailândia devido a falhas na mitigação dos riscos da pesca IUU, relatórios de direitos humanos documentam casos de escravidão e abusos nas embarcações de pesca nos navios tailandeses”.

A pesca sustentável e transparente

O crescimento do consumo excessivo e descontrolado de peixe pode ser considerada uma das causas do aumento da pesca ilegal e, consequentemente, da falta de transparência quanto à origem e à forma como o atum é pescado. Devido a isso, problemas como o risco de extinção de algumas espécies marinhas e casos de tráfico humano e escravatura moderna, como os divulgados pela Bloom, ainda são recorrentes actualmente.

A identificação dos produtos com o selo "pesca sustentável" contribui para o conhecimento do consumidor sobre a origem do atum que encontra na prateleira do supermercado. Além disso, havendo um maior controlo e fiscalização, os casos de exploração e de violações de direitos humanos são mais denunciados, o que também auxilia na luta contra o tráfico humano.

No relatório Canned Brutality, além das medidas já tomadas pela UE, defendem-se também acções como o estabelecimento de mecanismos de queixa, para que os trabalhadores relatem as violações vividas ou presenciadas. Outra medida seria a exigência de transparência pública relativamente à cadeia de suprimento do pescado, desde a chegada dos tripulantes às embarcações até aos pontos de venda.

Texto editado por Claudia Carvalho Silva

Artigo actualizado às 17:40 de 14 de Junho de 2023: foi retirada a informação sobre o selo de pesca sustentável presente na lata do atum