Há um momento na vida em que deixamos de dizer “a nossa casa” para passarmos a dizer “a casa dos nossos pais”. Sem pensarmos demasiado nisso, é o momento em que nos autonomizamos e passamos a ser donos de uma vida própria. (Já éramos, agora temos essa consciência.) Assusta ter as rédeas da vida nas nossas mãos trémulas quando foram os nossos pais que estiveram tantas vezes ali para nos resgatar da aflição: coisas pequeninas e grandes. O sarampo, o teste que correu mal, o professor que foi injusto connosco, o casaco com que tanto sonhámos. Primeiro, a noção de que somos nós agora a correr para nós próprios em busca da salvação, depois o momento, mais tarde – que seja sempre mais tarde –, em que já não diremos, em voz alta: “O pai pode?”, “Mãe, consegues?” Um discurso directo interrompido pela inevitabilidade da vida. Eu ainda não fiz as pazes com essa inevitabilidade. A dor ainda me derruba.
Vim da casa dos meus pais. Será sempre assim que o direi, mesmo com a morte da minha mãe. A presença dela poliniza o jardim, e eu sinto o cheiro que me dá conforto quando abro uma das gavetas, uma dessas que a vi abrir vezes sem conta. Aquele cheiro que não vinha de nenhuma embalagem, mas do amor das mãos dela.
Gosto e preciso de voltar ali enquanto a todos fizer sentido. O meu pai foi a tempo da redenção em vida e é bom até quando estamos em silêncio e o vejo a sorrir alimentando-se das memórias. Percebo agora que para o meu pai chegou o tempo em que as memórias são o suficiente para viver. Não o condeno. O espanto já não o apanha porque ele quer paz.
Em casa dos meus pais, quando me reencontro com os objectos com que cresci, perco a idade: sinto-me outra vez a miúda que julgava não ter corpo porque o pensamento é que me dava existência. Há dias, entrei no quarto da minha mãe e cheirei, depois deste tempo todo, o perfume dela que ainda ali está: um frasco que ficou por acabar, mas que está ali porque aquele será sempre o quarto dela. A casa deles. Agora direi: a nossa casa.
São emocionalmente muito intensos estes encontros com o passado quando nós já não somos os mesmos. Quando a vida já nos subtraiu amores e temos de nos aguentar com a mão firme que abre a porta de casa. Aquela mesma porta que abrimos tantas vezes com propriedade, porque era dali que entrávamos e saíamos todos os dias ainda sem ver o futuro. Dói muito pensar a vida e ainda conseguir manter um sorriso, mas se voltamos à casa do nosso passado, então temos de continuar. Continuar é um verbo tão poderoso que nunca tinha pensado a sério nele como agora. Continuar é melhor do que resistir: é desafiar o medo e entrar num caminho do qual não sabemos ainda o fim.
Continuo então na viagem ao passado sabendo que esse é o meu presente. O meu irmão entregou-me com um sorriso um envelope com fotografias e documentos variados, e eu mergulhei nesse embate que me deixa a voz pouco segura e os óculos embaciados. Os meus pais antes de mim, de nós. (Mais tarde chamei o meu pai e ficámos os dois a ver as fotografias no sofá.)
Continuar – insistir que a dor não leva a melhor, mesmo quando nos dói até onde não é corpo. Dói em todo o lado, mas, ainda assim, continuamos. A dada altura temos de armazenar a dor em vácuo e não cair na tentação de voltar a ela. A dor impede-nos de viver.
Preciso de olhar para o meu pai redimido e ver-lhe o sorriso da vida cheia que teve. Uma vida feita de obstáculos tão duros que me parecem de outra realidade. O meu pai continuou. Dos seus erros retiro, ainda assim, a maior vitória: o amor que a todos nos une. O amor – que se materializa em gestos, acções, palavras – salva-nos sempre. Também é por isso que continuamos.