Estado de Direito Social, dignidade da pessoa humana e crime de lenocínio

Sacrificar-se a dignidade da pessoa humana em prol de uma alegada liberdade – que não é a de quem se prostitui – é incompatível com um Estado de Direito baseado na dignidade da pessoa humana.

Ouça este artigo
--:--
--:--

O acórdão n.º 218/2023 do Tribunal Constitucional, recentemente noticiado, no qual se anuncia a abertura de um possível caminho para a despenalização do crime de lenocínio, não pode deixar de merecer uma reflexão pelo retrocesso civilizacional e jurídico que representa.

Retoma-se a antiga discussão sobre se a tipificação do crime de lenocínio, ao não incluir o aproveitamento pelo agente de uma situação de vulnerabilidade económica e social da vítima, vai além do que seria justificado pelo objetivo de proteção de um bem jurídico-penal, pondo em causa o princípio da proporcionalidade.

Antes da reflexão jurídica que este desenvolvimento me merece, importa referir alguns números veiculados pela plataforma portuguesa para os direitos das mulheres, retirados de diversos estudos sobre o tema da prostituição.

Na União Europeia, em 2021, predomina o tráfico para fins de exploração sexual – mais de metade das pessoas traficadas na Europa! 87% das vítimas traficadas para fins de exploração sexual são mulheres e raparigas. 94% das mulheres relataram ter sido vítimas de violência enquanto se prostituíam. 89% das mulheres deseja sair do sistema da prostituição, sendo a falta de alternativas económicas o motivo pelo qual 88% das mulheres não conseguiu sair. Também, cerca de 70% das pessoas no sistema da prostituição são migrantes e 75% têm entre 13 e 25 anos de idade. A idade média de entrada na prostituição é de 14 anos, sendo que a grande maioria das mulheres que entram no sistema da prostituição foram vítimas de abuso sexual, violência doméstica e/ou viveram em situação de sem-abrigo.

Muitas destas mulheres tornam-se viciadas em substâncias ilícitas como forma de lidar com a situação, sendo a pobreza a grande força motriz desta realidade. Num estudo de José Teixeira [Ideação Suicida em Prostitutas de Rua, 2011], de leitura obrigatória, revela-se que a maioria das mulheres eram mães (86,5%) e tinham abandonado a escola antes dos 16 anos (70%). 94% destas mulheres tinha sido vítimas de algum tipo de violência, 55% tinham sido vítimas de violência física e 51% de violência sexual. Quase metade (44%) já se tinha tentado suicidar. Finalmente, importa assinalar que um proxeneta aufere, anualmente, cerca de 110.000 euros por cada mulher que mantém na prostituição.

Perante estes números, que não podem deixar de nos interpelar, qualquer argumento no sentido de que quem condena a despenalização do lenocínio o faz por juízos morais, pondo em causa uma alegada liberdade à autodeterminação sexual ou outra, revela-se inaceitável.

Estes números revelam que o sistema da prostituição agrava, perigosamente, as desigualdades estruturais de género, de classe, de poder, e de raça, pondo em causa os mais elementares direitos humanos, a começar pela dignidade da pessoa humana.

A Constituição portuguesa refere, logo no seu primeiro artigo, que Portugal se baseia na dignidade da pessoa humana, comprometendo-se a garantir que ninguém pode ser privado de qualquer direito devido à sua "ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual."

E, apesar de a Constituição prever, expressamente, que "a integridade moral e física das pessoas é inviolável" e que "ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanos", o Tribunal Constitucional parece defender que o comportamento de todo aquele que "profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição", pondo em causa a sua dignidade e submetendo-a a tratamentos desumanos, não constitui um crime.

Mais, argumenta este Tribunal que o crime de lenocínio, tal como tipificado, afeta o direito à liberdade e que esta restrição não se limita ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Sucede que a restrição à referida liberdade visa proteger a dignidade das pessoas em situação de prostituição. Visa, igualmente, reprimir, punir e dissuadir a exploração de um ser humano, colocando-o numa situação de extrema vulnerabilidade, com a finalidade de obter um benefício económico.

Sacrificar-se a dignidade da pessoa humana em prol de uma alegada liberdade – que não é, e os números demonstram-no, a de quem se prostitui – é incompatível com um Estado de Direito baseado na dignidade da pessoa humana, e comprometido em proteger e garantir os direitos fundamentais de todos, sem qualquer exceção.

Portugal ratificou, e muito bem, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, bem como a Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e de Exploração da Prostituição de Outrem. Relativamente a esta última Convenção, é afirmado que "a prostituição e o mal que a acompanha, a saber, o tráfico de pessoas com vista à prostituição, são incompatíveis com a dignidade e valor da pessoa humana."

Portugal integra uma União Europeia que se funda "nos valores do respeito pela dignidade humana". Uma União Europeia que declara serem estes valores "comuns aos Estados-Membros". Uma União Europeia que tem uma Carta dos Direitos Fundamentais que declara que a dignidade da pessoa humana é inviolável, pugnando pelo respeito pela integridade física e mental de toda a pessoa, e proibindo qualquer tipo de tratamento degradante.

Face ao exposto, um Estado de Direito Social que coloca a dignidade da pessoa humana no seu centro, não pode deixar de punir quem põe em causa a dignidade de outrem. Também não pode alegar que esta punição viola a Lei Fundamental que se centra, precisamente, na dignidade da pessoa humana. Por último, não pode invocar que a liberdade de uns se sobrepõe à liberdade e dignidade de outros.

A um Estado de Direito Social cumpre, sim, sancionar quem põe em causa a liberdade e a dignidade de outro ser humano, e garantir condições de vida dignas a todas as pessoas, que, pelas suas difíceis circunstâncias, se encontram no sistema da prostituição, dando-se, assim, cabal cumprimento à Constituição.

Sugerir correcção
Ler 5 comentários