A proteção do mar português só existirá se souber ser global

É da convergência de instrumentos jurídicos e de esforços aparentemente distantes que depende a saúde da vida marinha, o equilíbrio dos ecossistemas e se garante a cadeia de suporte da vida na Terra.

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Com o estabelecimento do limite externo da plataforma continental para lá das 200 milhas náuticas da zona económica exclusiva, o mar, com o respetivo solo e subsolo, poderá vir a representar 97% do nosso território, no conceito constitucional. A tendência futura é a de que o valor do território seja também calculado em termos de biodiversidade e, neste considerando, o território oceânico distingue-se pela importância e os vários serviços essenciais que presta a biodiversidade marinha.

Esta tendência reflete-se no oceano global, isto é, mesmo em espaços fora da soberania ou jurisdição do Estado. Neste caminho, o sucesso recente das negociações intergovernamentais em torno do Tratado para o Alto-Mar é um bom sinal. Em 4 de março de 2023, após quase duas décadas de estudos, resoluções e negociações complexas no seio da ONU, a adoção do texto do Tratado do Alto-Mar constitui um passo decisivo para concretizar o compromisso 11 expresso na Declaração de Lisboa “Nosso oceano, nosso futuro, nossa responsabilidade”, que coroou a Conferência dos Oceanos da ONU em julho de 2022.

Em concreto, é o compromisso de conclusão urgente de um acordo ambicioso, ao abrigo da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, sobre a conservação e utilização sustentável da diversidade biológica marinha dos espaços além da jurisdição nacional. Se a preservação da vida marinha depende em grande medida da entrada em vigor e do sucesso deste acordo para o alto-mar, em cúmulo à aplicação efetiva de outros tratados ambientais ou de pesca e em paralelo com as medidas de proteção e conservação aplicadas pelos Estados nos seus domínios de soberania ou jurisdição, certo é que ela depende também de tudo o que se fizer em termos de preservação do sistema terrestre na sua dimensão global, una e indivisível.

A compreensão do impacto das alterações climáticas no comportamento das espécies e ecossistemas marinhos, e a perda de biodiversidade associada, é um dos desafios mais sérios que se coloca à investigação científica marinha na atualidade. Tão sério a ponto de as alterações climáticas constituírem a ameaça mais perigosa, pela sua complexidade, à realização efetiva do objetivo fixado pelos Estados, em 19 de dezembro de 2022, no âmbito da Convenção sobre a Diversidade Biológica, de se proteger 30% do oceano, em especial, por meio de áreas marinhas protegidas.

É neste sentido que a nossa Lei de Bases do Clima (Lei n.º 98/2021), ao definir como objetivo da política externa o reconhecimento do “clima estável” como “património comum da humanidade”, dá um grande contributo para a preservação e valorização da biodiversidade marinha e, em particular, dá robustez ao desiderato do estabelecimento de redes de áreas marinhas protegidas. É, por conseguinte, da convergência de todos estes instrumentos jurídicos e medidas e de esforços aparentemente distantes que depende a saúde da vida marinha, o equilíbrio dos ecossistemas marinhos e, por reflexo, o respetivo contributo para a cadeia de suporte da vida na Terra. E isto processa-se sem afetar o quadro tradicional dos espaços marítimos, bem como dos poderes, direitos e deveres dos Estados, fixado no direito do mar.

Com efeito, no último relatório da Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas, para o período de 2021-2029, afirma-se: “A atmosfera e o espaço aéreo são dois conceitos diferentes, que devem ser distinguidos. (...) A atmosfera, como um “envelope de gases” que rodeia a Terra, é dinâmica e flutuante, com gases que se movem constantemente sem ter em conta as fronteiras territoriais. A atmosfera é invisível, intangível e indivisível”.

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Ao distinguir a composição química da atmosfera e o aspeto “funcional” da dinâmica do sistema terrestre, relativamente aos espaços aéreos sujeitos à jurisdição dos Estados, “uma instituição estática e espacial sobre a qual o Estado, dentro do seu território, exerce uma soberania completa e exclusiva”, torna-se claro, por raciocínio análogo, que a mesma distinção se deve fazer entre, por um lado, a composição bioquímica da água do mar e a circulação global dos oceanos e, por outro lado, os espaços marítimos sob soberania ou jurisdição do Estado.

Quase em simultâneo com este entendimento, através da nossa Lei de Bases do Clima, Portugal tornou-se no primeiro país a reconhecer que o planeta não é apenas uma superfície de 510 milhões de km2, antes possui um sistema que suporta a vida na Terra, e que a manutenção deste sistema global é base imprescindível para proteger a vida humana, bem como a biodiversidade terrestre e marinha.

A biodiversidade marinha exerce um papel essencial na manutenção de um clima estável e um clima estável é um pressuposto da manutenção de uma biodiversidade marinha saudável, rica, funcional e criadora de valor na economia. Um círculo virtuoso.

Se apostássemos na concretização do objetivo inovador plasmado na nossa Lei de Bases do Clima de assegurar um “clima estável”, estaríamos neste papel local a contribuir de modo determinante para a manutenção desse “património comum da humanidade” e a evidenciar o quanto este é fundamental para a sustentabilidade futura da nossa economia, da economia global, mas sobretudo e antes de tudo, para a prosperidade das gerações mais novas e das próximas gerações.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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