Femtech: como a falta de investimento nesta área tem afetado a saúde feminina

O facto de as doenças que exclusivamente afetam mulheres ainda serem tão ignoradas pela comunidade médica e científica é uma violação clara do princípio da igualdade de género.

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Apesar de vivermos num mundo liderado pela tecnologia, onde já é possível imprimir órgãos e membros do corpo humano ou iniciar uma fecundação em laboratório, ainda há muito para explorar e desenvolver. Uma área que carece de investimento é a Femtech – termo utilizado para designar todas as tecnologias dedicadas à saúde feminina.

De acordo com um artigo do Financial Times, uma das razões para a fraca aposta nessa área é o facto de grande parte dos investidores serem do sexo masculino, cujo interesse nos problemas e doenças femininas é menor, pois não os impactam diretamente. Outro motivo, segundo um estudo da McKinsey, deve-se à falta de dados e informação acerca do tema. Consequentemente, o processo de estudar e encontrar soluções para determinadas doenças torna-se muito demorado e moroso, impedindo o progresso científico.

É imprescindível consciencializar as pessoas, desenvolver dados, investigação e investimento para todo o ecossistema Femtech, especialmente em Portugal. O empreendedorismo de impacto, que luta por desenvolver soluções para causas societais, pode e deve contribuir para o desenvolvimento e inovação em Femtech, tendo aqui uma grande janela de oportunidade.

Em Portugal, o empreendedorismo nesse setor é praticamente inexistente, porém existem alguns projetos interessantes. Destaco a plataforma AthenaDAO, fundada pela Inês Santos Silva, que tem a finalidade de atrair financiamento e investigação neste campo. Constitui uma comunidade descentralizada de investigadores, fundadores e defensores do avanço da investigação, educação e financiamento da saúde feminina. Realço também a Glooma, que é uma aplicação bastante útil na prevenção contra o cancro da mama, vencedora de um dos nossos programas de aceleração da Casa do Impacto.

Em contraste com o nosso país, em Inglaterra há uma forte aposta por parte das empresas e academia para estudar Femtech – vejamos o exemplo da London School of Economics and Political Science (LSE), parceira da Casa do Impacto, que, entre outras iniciativas, investiu na startup de monitorização do ciclo menstrual, a Clue. Existe, ainda, um fundo inglês dedicado a Femtech e à saúde feminina, o Goddess Gaia Ventures, que funciona de forma semelhante à AthenaDAO.

A endometriose, por exemplo, é uma doença crónica, sem cura, muito limitadora, para uma em cada das dez mulheres afetadas pelo problema. Eu própria fui diagnosticada com endometriose há pouco tempo, após vários anos a viver com a doença sem saber, quando a minha qualidade de vida já estava a ser bastante afetada. O diagnóstico demora em média sete ou oito anos a fazer e só é possível fazê-lo na maior parte das vezes após cirurgia. Este fator deve-se, principalmente, à falta de consciencialização sobre a doença, à normalização da dor, à semelhança dos sintomas a outras doenças e à falta de acessibilidade a médicos especializados.

A patologia traduz-se no alojamento de tecido endometrial – tecido que forra o útero – em órgãos onde não é suposto estar, como na trompa, nos ovários, intestinos ou, em situações mais graves, nos pulmões e no cérebro. É uma doença grave que diminui a qualidade de vida da mulher, provocando dores insuportáveis, entre muitos outros possíveis sintomas.

A endometriose impacta fortemente a vida das mulheres, podendo conduzir à infertilidade, acabando por afetar não só a mulher como a sua vida familiar. É fundamental que este problema se torne uma questão social – a saúde feminina e reprodutiva é um assunto que deve ser abordado como um direito humano.

Por todas estas razões, é crucial que se desenvolvam ferramentas Femtech, tais como aplicações móveis, plataformas e aparelhos tecnológicos que apoiem as mulheres e os profissionais de saúde a analisarem os sintomas, a recolherem e analisarem dados, e a perceber de que problema se trata, na sua fase inicial, de forma mais fácil e eficaz. Assim, torna-se, igualmente, mais simples encontrar uma solução e o tratamento mais adequado à paciente.

O investimento em Femtech impulsiona o aumento da saúde das mulheres em geral, uma vez que, através de novas aplicações e plataformas, o acesso a cuidados de saúde torna-se mais conveniente e direto. Além disso, essas mesmas ferramentas fomentam o debate sobre temas tabu, como a menopausa e saúde sexual das mulheres, contribuindo para aumentar o nível de literacia na saúde da população em geral.

A população feminina representa mais de 50% da população mundial e as mulheres que são mães representam 80% das decisões relacionadas com saúde. O facto de as doenças que exclusivamente afetam mulheres ainda serem tão ignoradas pela comunidade médica e científica é uma violação clara do princípio da igualdade de género. A farmacêutica norte-americana Organon, no último Dia da Mulher, alertou para o facto de a gravidade do investimento na saúde das mulheres representar apenas 1% da investigação e inovação no total do investimento no sector da saúde nos EUA.

Lanço assim um repto para o ecossistema de empreendedorismo, para que investidores e empreendedores passem a olhar para este tema do Femtech como uma oportunidade gigante de negócio, em face do deserto de soluções que existem, num mercado que é obviamente enorme. Que uma vez mais sejam o holofote que tantas vezes são, para que se criem mais soluções inovadoras que respondam a este problema societal, que tanto precisa.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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