Livros a Oeste: “Temos de afinar as palavras”

O festival literário na Lourinhã continua a apostar em novos públicos e não desiste de incentivar à leitura logo nos primeiros anos de escolaridade.

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João Ferreira Oliveira participou nesta edição do Livros a Oeste ©Rafael Malvar
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“O objectivo é que vão para casa e fiquem a pensar na história. Mesmo que não a entendam totalmente”, disse o escritor sobre Monterroso ©Rafael Malvar
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O dia de sexta-feira no Livros a Oeste começou nas escolas, com as visitas de José Luiz Tavares (A poesia vai à escola) e de João Ferreira Oliveira (Monterroso e A Cidade e a Serra). O PÚBLICO acompanhou este último numa sessão com alunos de 5.º e 6.º ano, na Escola Dr. João das Regras.

À sua espera na biblioteca tinha crianças participativas e até cúmplices na escrita. Algumas já tinham redigido contos e outras criado bandas desenhadas em conjunto. Três delas ambicionam ser escritores.

Um rapaz do 6.º ano quis mesmo saber o que teria uma criança de fazer para ver um livro seu editado.

A tudo respondeu João Ferreira Oliveira com delicadeza e humor. Foi quando o jornalista e escritor comparou o trabalho de escrita ao de um músico, que “tem de ensaiar muito para se ir aperfeiçoando”, que uma menina do 5.ºB disse: “Tem de afinar as palavras.” Uma frase poética e feliz, de que nos apropriámos para o título deste artigo.

Para compor o cenário de bom acolhimento, havia um pequeno quadro com a foto e o nome do autor sobre uma mesa com os seus livros. Dois deles seriam lidos e mostrados do princípio ao fim, Monterroso (ilustração de Maria Bouza, edição da Máquina de Voar) e A Cidade e a Serra (ilustração de Margarida Esteves, edição da Máquina de Voar). Mas os alunos queriam mais, embora já tivesse passado mais de uma hora de sessão.

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O escritor disse aos alunos da Escola Dr. João das Regras que em A Cidade e a Serra se inspirou na cidade da Covilhã, onde estudou ©Rafael Malvar

O autor perguntava sempre o nome às meninas e meninos que queriam intervir. Numa altura em que questionou uma aluna sobre qual era o seu nome, deu-se um dos vários momentos divertidos deste encontro. “Chamo-me Maria, mas se chamar Maria a qualquer uma da nossa turma [6.ºA], provavelmente acerta.” E assim foi, pelo menos quatro Marias ali estavam sentadas sobre as mantas coloridas espalhadas pelo chão.

O também autor de A Estranha História do Príncipe Que Inventou o Abecedário (ilustração de Margarida Teixeira) contou como surgiu o primeiro livro que escreveu, A Origem das Espécies Reinventada, com ilustrações de Anabela Dias e edição da Trinta por Uma Linha. “Já lá vão 11 ou 12 anos. Vocês estavam a nascer e estava um livro a nascer também”, disse depois de querer saber a idade dos alunos e que variava entre os 11 e os 12 anos.

Fez saber que resultou de uma promessa à sua filha mais velha e de quem foi recebendo instruções para ir melhorando a história. “Ela assumiu o papel de editora até de uma forma arrogante.” E logo perguntou: “Sabem o que é ser arrogante?” Resposta rápida: “Vaidosa.”

Só a imaginação não basta

Foi neste diálogo dinâmico e construtivo que decorreu a sessão. João Ferreira Oliveira devolveu-lhes a inevitável pergunta sobre a origem da inspiração. “De onde acham que vem?” Algumas ideias: “Do cérebro”, “da experiência”, “de outros livros”, “da música”, “da imaginação”, “das aves”, “da televisão”, “do capitão Cuecas”.

O escritor foi explicando que “são muitas as fontes de inspiração”, frisando que é importante “não estar sempre no mesmo sítio nem fazer sempre as mesmas coisas” porque isso tolhe a imaginação. “As histórias de quem não sai do mesmo lugar tornam-se monótonas, repetitivas, chatas.”

No entanto, alertou para que só a imaginação não chega. “Imaginam que se o Ronaldo ou o Messi não treinassem seriam assim tão bons? Ou alguém que toca piano ou um cantor ou uma cantora que não ensaiasse? Saía tudo desafinado, não era? Aqui [na escrita] é igual.” Foi então que surgiu a tal frase: “Temos de afinar as palavras.”

A leitura do livro Monterroso foi antecedida pela explicação de que era uma espécie de homenagem a Augusto Monterroso, que escreveu aquele que é considerado o mais pequeno conto de sempre: “Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.” Veio a estranheza: “Isso é uma história?”

O autor confirmou e disse ainda que não era para crianças. Para depois fazer o exercício de que os miúdos percebessem o que poderiam imaginar a partir dali. “O objectivo é que vão para casa e fiquem a pensar na história. Mesmo que não a entendam totalmente.”

O livro começa assim: “Quando os pais chegaram ao quarto, Monterroso não estava lá.”

No final, houve discussão animada sobre aquele conto, em que os pais procuram o filho, que terá desaparecido nas páginas de um livro.

Seguiu-se A Cidade e A Serra, transmitindo o autor no final que se tinha inspirado na cidade da Covilhã, onde estudou. É a história de Abel, que pintou as paisagens serranas nos prédios da cidade e fez com que os dois mundos, cidade e serra, voltassem a comunicar. Valorizando o poder da arte.

Já o relógio tinha avançado e era preciso terminar a sessão, mas foi com alguma dificuldade que João Ferreira Oliveira se conseguiu despedir das crianças.

No final, satisfeito, o escritor disse ao PÚBLICO: “Como é que ainda há quem fale no fim do livro? É certo que estes miúdos ainda não estão viciados nos telemóveis e haverá uma fase em que se distrairão com outras coisas. Mas estou certo de que depois voltam aos livros.” Quando saiu da escola, a esperança ainda estava lá.

O Livros a Oeste, organizado pela Câmara Municipal da Lourinhã, termina neste sábado.

O PÚBLICO esteve na Lourinhã a convite do festival

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