Cientistas pedem à UNESCO que coloque Doñana na lista do “património em perigo”

Dezenas de cientistas e organizações internacionais ligadas à conservação e ao estudo das aves migratórias alertam para a perda dos “valores naturais e científicos” da área Património da Humanidade.

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O Parque Nacional de Doñana viu crescer na sua envolvente milhares de hectares de projectos agrícolas dedicados à cultura dos frutos vermelhos Nuno Ferreira Santos
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Uma carta aberta escrita por um grupo de cientistas internacionais ligados ao estudo das aves migratórias e assinada por dezenas de entidades de diferentes países, incluindo Portugal, está a pedir à UNESCO que coloque o Parque Nacional de Doñana, na Andaluzia, Espanha, classificado como Património da Humanidade desde 1994, na lista do “património em perigo”.

É um acto “simbólico”, referem os autores, justificado pelo “estado terrível” em que se encontram “os valores naturais e científicos” do local, profundamente afectado por uma seca persistente que se arrasta há anos e pelo desvio de água do aquífero local para a produção de frutos vermelhos.

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O Parque Nacional de Doñana está fortemente ameaçado pela seca e o uso excessivo da água no seu subsolo para práticas agrícolas intensivas Nuno Ferreira Santos

O documento é promovido por sete cientistas que estudam as aves migratórias, incluindo o português José Alves, do Centro de Estudos do Ambiente e Mar do Departamento de Biologia da Universidade de Aveiro e da Universidade da Islândia, e agregou já a assinatura de dezenas de grupos peritos na conservação das aves, organizações não-governamentais ligadas à preservação das zonas húmidas, ou institutos científicos ligados ao estudo das aves e da conservação do património natural.

Entre eles estão a Speco — Sociedade Portuguesa de Ecologia e a SPEA — Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves, lado a lado com instituições e cientistas dos Países Baixos, Reino Unido, França, Alemanha, Bélgica, Chile, Senegal, Serra Leoa, Mauritânia ou Zimbabué. Todos empenhados em chamar a atenção para a necessidade de proteger Doñana.

A carta foi divulgada este sábado, quando se celebra o Dia Mundial das Aves Migratórias, que este ano é subordinado ao tema Água Vital para as Aves. Foi esta efeméride, e não o facto de estarmos a poucas semanas das eleições locais em Espanha, que têm tido Doñana como um tema primordial, que levou à escolha da data para a divulgação do documento, garante José Alves.

“Não tivemos a intenção que calhasse perto das eleições, mas deu-se esta coincidência e, por um lado, ainda bem, porque é bom que as pessoas tomem consciência do que está a acontecer, para que possam votar sabendo quais as questões que estão em debate”, diz.

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A lagoa junto à localidade de El Rocío é das poucas que ainda tem água Nuno Ferreira Santos

Na carta aberta, os cientistas lembram que “o ecossistema mais alargado de Doñana, na bacia do Guadalquivir [...], foi considerado durante muito tempo a jóia da coroa na rede de áreas protegidas da Europa”, mas que hoje Doñana está “rapidamente a perder os seus ecossistemas característicos e a sua biodiversidade única”. Por outro lado, a capacidade da bacia do Guadalquivir “em sustentar as populações de aves migratórias está sob ameaça”.

Embora reconheçam que “muitos factores” contribuíram para essa degradação, identificam a “sobreexploração do aquífero para a agricultura intensiva e o turismo de massas” como o principal problema, agravado mais recentemente pela seca persistente. “Nos últimos 30 anos, a sobreexploração dos aquíferos resultou na redução dos níveis de água em cerca de 20 metros, resultando na perda de 60% das lagoas de Doñana. Isto culminou na dessecação [secura extrema] mesmo das maiores lagoas permanentes em 2022, causando enormes danos na fauna e flora de água fresca únicas de Doñana. A extracção de água do subsolo também está ligada ao uso intensivo de fertilizantes, o que está a causar a eutrofização da água remanescente, e dos pântanos e nascentes de Doñana”, lê-se no documento.

O Parque Nacional de Doñana viu crescer na sua envolvente milhares de hectares de projectos agrícolas dedicados à cultura dos frutos vermelhos. Agora, o governo da Andaluzia tem uma proposta para que sejam legalizados cerca de 2000 hectares de áreas de cultivo que são ilegais, o que está a ser fortemente contestado pelo Governo de Espanha, que conta com o apoio da Comissão Europeia e de vários peritos ligados à conservação do ambiente.

A carta aberta agora divulgada é mais uma voz a juntar-se aos que se dizem “muito preocupados” com este plano andaluz. Os signatários pedem que ele seja abandonado, “implorando” aos governos regional e central que garantam “um espaço de operação seguro no qual se possam preservar os valores naturais de Doñana, bem como assegurar uma agricultura climaticamente resiliente na bacia do Guadalquivir”. À Comissão Europeia é também pedido que “use todos os meios ao seu dispor para reforçar as leis europeias da natureza e da água e também para ajudar os países afectados e regiões como a bacia do Guadalquivir na transição para um futuro de resiliência climática”.

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A comunidade científica diz que a extraordinária biodiversidade de Doñana está em risco Nuno Ferreira Santos

Aviso para Portugal

A bióloga Maria Amélia Martins-Loução, presidente da Speco, lembra que este organismo há anos que estende o seu estudo a toda a Península Ibérica, e que sempre apontou Doñana como “um caso único e uma área privilegiada que devia ser preservada”. “Estamos perante um complexo de diferentes habitats em retalho, que estavam num equilíbrio ecológico extremamente consertado e conservado, e devido à ganância da exploração está nestas condições debilitantes actuais”, diz.

Além disso, defende, o que está a acontecer na costa portuguesa, entre Sagres e Tróia, é “em pequena escala, e com impacto, para já, bastante menos dramático, similar ao que se passa em Doñana, quer do ponto de vista agrícola, quer turístico”. O que constitui mais um motivo para a Speco se juntar à carta aberta.

Já a SPEA, pela voz de Joaquim Teodósio, salienta que Portugal, e sobretudo o estuário do Tejo, partilha com Doñana as rotas migratórias de diferentes espécies e que as ameaças a estas duas importantes zonas húmidas (com o aeroporto no Montijo em destaque do lado de cá da fronteira) não podem ser dissociadas.

“Doñana é das áreas mais importantes na Europa para estas espécies migratórias e temos um problema ligado às alterações climáticas, a seca intensa, profundamente agravado pela falta de planeamento e pela utilização desregrada da água, numa agricultura ultra-intensiva, que acabou por criar um mercado que não existia e que temos dúvidas que seja necessário. Toda a vida passámos sem morangos o ano inteiro sem que viesse mal ao mundo, mas esta mudança está a levar à destruição de sítios e este é um exemplo muito gritante disso mesmo”, diz.

O “grande alerta” que é deixado nesta carta aberta, diz José Alves, poderá ser também uma forma de se conseguir mais financiamento para a conservação de Doñana. E também servir como um abrir de olhos para o que pode vir a ser a realidade noutras áreas protegidas da Europa, incluindo o Tejo. “Em outros países há ameaça, mas a questão de Doñana está a acontecer agora. Enquanto nos outros sítios são ainda planos e há debate a decorrer, em Doñana não, já está para lá disso”, diz.

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