Rita Lee, tal qual uma marciana, via o Brasil como bizarrice genial

Dos seres encantados de Atlântida aos alienígenas salvadores, a artista mandava mensagens para muito além desse mundo pequeno e careta.

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Um disco de Rita Lee numa loja em São Paulo, no dia da morte da cantora AMANDA PEROBELLI/Reuters
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Rita Lee sempre achou o título de rainha meio cafona. Preferia ser chamada de "cacica", talvez numa referência respeitosa a alguém que todos em um povo procuram em busca de sabedoria. Algo que ela sempre ofereceu de sobra.

Não em aspas estridentes, frases calculadas para impressionar repórteres desavisados ou fãs bissextos, que ouvem as mesmas cinco músicas de Rita programadas há décadas em playlists preguiçosas e, nas palavras dela mesma, "sem cobrar jabá". Mas na beleza de poesias que eram a pura manifestação de seu talento maior: defender a liberdade.

Tudo que um ou uma adolescente precisa ouvir aos 14 anos é alguém cantar: "Um belo dia eu resolvi mudar e fazer tudo que eu queria fazer". Por estes dois simples versos, gerações já teriam motivos para idolatrar Rita Lee e chorar esta despedida. Mas, depois disso, vieram outras tantas ondas de inspiração.

De um brinde à morte — e fazendo amor — a súplicas por protecção —"Deus me livre e guarde de você", em Reza —, Rita ensinou a transgredir tudo que a vida tola sempre empurrou — e ainda empurra — para a gente.

Dos seres encantados de Atlântida aos marcianos salvadores, ela mandava suas mensagens para muito além deste mundo pequeno e careta. Sorte de quem estava lá para recebê-las. Fosse no escurinho do cinema ou numa banheira de espuma.

Tudo vinha como uma natural extensão daquela cabeça errante, no melhor dos sentidos. Rita via tudo e sobre tudo se manifestava. Muitas opiniões viravam música. Outras, pérolas numa entrevista.

A maneira imprevisível com a qual respondia às perguntas era capaz de desarmar o mais preparado dos repórteres.

"Com tudo que eu já tomei nesta vida, Zequinha, com toda esta platina que tenho na minha cabeça, eu estou óptima", disse-me anos atrás, saindo de internamento hospitalar.

A resposta para a óbvia pergunta subsequente — "O que você tanto tomou, Rita?" —, que não foi sequer balbuciada, havia-se tornado irrelevante diante da transparência e candura que demonstrava.

Moderna numa dimensão habitada por poucos artistas, mesmo os apontados como "à frente do seu tempo", Rita celebrava a saúde e a decadência, a Maria Mole e a ovelha negra, um doce vampiro e a Miss Brasil 2000. Todo o universo se encaixou bem nesta galeria de bizarrices geniais que é o Brasil que ela viveu.

Rita chamou Pagu, o "fio da véia", Mamãe Natureza, o Gregory "Peque", Bwana, Roberto de Carvalho — o amor de sua vida — e até um rosa-choque para fazer barulho. E os ecos da sua festa de arromba serão ouvidos por muitos anos.

Uma vez, andando com ela no seu refúgio em Cotia, em São Paulo, Rita abriu para mim e para Mariana Ximenes, com quem esboçávamos há dez anos o projecto de uma cinebiografia, o seu quarto secreto. Improváveis figurinos, absurdas perucas e inexplicáveis adereços saltavam de caixas e araras, numa cornucópia de momentos memoráveis dela no palco.

Surpreso diante desta desimportância que ela atribuiu ao próprio acervo precioso, perguntei: "Como assim, Rita? Isso é um tesouro!"

A resposta: "O que fica, Zequinha, é a música. E todas as coisas que eu lembro de todos esses shows. E olha que eu não me lembro de muita coisa".

Nós dois começamos a gargalhar e Mariana, que estava meio longe experimentando um estupendo adereço de ombro com múltiplas cabeças da própria Rita, ficou sem entender nada. Mas quem precisava de explicações?

Estávamos diante de uma entidade maior, de uma provocadora assanhada e inteligente, de uma mulher do ano 3000. De uma "cacica" que nos ensinou que todas as despedidas são coisas da vida.

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