O que o terramoto dá só o terramoto pode tirar? O karma de Erdogan

Hoje, os fragilizados e relativamente escondidos herdeiros do kemalismo agitam-se perante a possibilidade de uma mudança que não anteciparam que se proporcionasse tão depressa.

1999 poderá ter sido o mais importante ano na vida política de Recep Tayyip Erdogan: o infortúnio do terramoto do final da década permitiu-lhe percorrer um caminho que há muito ansiava fazer. A demora e ineficácia da coligação governativa na assistência às vítimas e na reconstrução foram penalizadas pelos eleitores com uma reviravolta na política turca, garantindo ao recém-formado Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP) 34% dos votos e a muito incomum formação de governo sem coligação, pois só o CHP (Partido Republicano do Povo) conseguiu ultrapassar o limite constitucional dos 10% para garantir representação parlamentar.

Depois de décadas de coligações periclitantes e umas Forças Armadas que assumiam o papel de guardiães da herança Kemalista na contenção de tentações islamizantes, o AKP prometia estabilidade política e económica, a continuação do processo de adesão à União Europeia e uma política externa de zero problemas com os vizinhos. Agradou a gregos e a troianos, que é como quem diz, no caso da polarizada sociedade turca, a kemalistas republicanos pró-ocidentais e a conservadores islâmicos.

Com o tempo, um Erdogan que era saudado amigavelmente em quase todas as capitais europeias e ainda com mais entusiasmo sempre que visitava as esperançosas sociedades da Primavera Árabe começou a tornar-se progressivamente assertivo e irascível. Os turcos fizeram o mesmo que haviam já feito com sultões e o próprio Ataturk: perdoavam-lhe os excessos e a força autoritária de um pai severo, na firme crença de que este os protegeria quando o momento chegasse.

Ora, se em 1999 a população turca se sentiu defraudada pela falta de apoio, pelo atraso e pela incapacidade do Estado em prover ajuda eficaz e em tempo útil, quase 25 anos depois, um novo terramoto, que se estima ter tirado a vida a 50.000 pessoas, pode ter sido a gota que fez transbordar um descontentamento latente mas silenciado pelo ambiente de autocensura e perseguição que se vive na Turquia, Em particular, desde o falhado “golpe” de Estado de 2016: o Estado-pai não assistiu nem salvou como era esperado pela sociedade que acatou durante duas décadas uma governação com tiques ditatoriais cada vez mais agressivos.

Não é de Erdogan a responsabilidade pelo fatal fenómeno natural que resulta da confluência de três placas tectónicas no território da Anatólia, mas foi mas foi pela sua mão e síndrome de perseguição que organizações da sociedade civil foram proibidas de atuar – inclusivamente as de assistência e salvamento que encerrou compulsivamente; foi com o seu beneplácito que empresas de construção ignoraram as exigências de normas de segurança criadas após o terramoto de 99 e avisos constantes de engenheiros; foi com a sua conivência que dinheiros públicos se desviaram para uma corrupção nepotista e para as caras amizades que o ajudaram a minar todas as estruturas kemalistas e gullenistas que o continham no início dos anos 2000; foi com a sua gestão danosa e decisões dúbias de política externa que a economia chegou a uma inflação de dois dígitos, expectavelmente agravada pelas despesas da megalómana e imediata reconstrução que promete a todas as populações, num último esforço para recuperar votos que ficaram debaixo dos escombros dos edifícios que ruíram.

Hoje, os fragilizados e relativamente escondidos herdeiros do kemalismo agitam-se perante a possibilidade de uma mudança que não anteciparam que se proporcionasse tão depressa. A maior ameaça vem da coligação da oposição e assenta num frágil entendimento de seis partidos com algumas divergências. Kemal Kılıçdaroğlu poderá vir a ter dificuldade em gerir o regresso à negociação constante e à instabilidade governativa que resultará de uma possível dispersão eleitoral, mas é a única oportunidade que este discreto concorrente do CHP, conhecido pela luta contra a corrupção, e a aliança que o suporta, poderão ter em muito tempo.

Conseguiu, pelo menos, ser um nome relativamente consensual e apresentar a candidatura com apoios significativos.

Menos sorte teve o presidente da câmara de Istanbul que se viu rapidamente envolvido num processo judicial em dezembro último, por aquilo que os tribunais turcos entenderam ser insultuosas afirmações sobre instituições eleitorais, com contornos suspeitos e do qual resultou uma pena de prisão e o afastamento de qualquer atividade política durante mais de dois anos. Obviamente, incluindo a proibição participar nas eleições que se aproximam.

Não conseguimos antecipar os danos e a profundidade das raízes do Estado sombra que o atual Presidente construiu e se elas são suficientes para conter o desagrado de uma sociedade tão "erdoganizada", mas será, sem dúvida, o grande desafio da década para esta sempre tão agitada Turquia. Tampouco conseguimos já antever o impacto de uma eventual mudança na relação mutuamente interesseira com Putin ou na inesperada reaproximação a Bashar Al-Assad. Mas os dados estão lançados e a questão central só será respondida a 14 de maio: terão os turcos encontrado no terramoto que lhes roubou a democracia em 20 anos uma nova esperança e um novo caminho em direção à liberdade e aos direitos fundamentais sucessivamente coertados? Poderá o terramoto tirar a Erdogan aquilo que lhe deu há um quarto de século?

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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