As desculpas do Presidente – a luta continua!

Somos instados a reconhecer o que de “bom e de mau fizemos no passado”, como se, equilibrando o “bom” e o “mau”, se ilibasse o Portugal atual de um compromisso com uma política de reparação histórica.

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No discurso da sessão solene do 25 de Abril, o Presidente da República ensaiou uma espécie de pedido de desculpas pela colonização. Diz-nos que é nosso dever “assumirmos plenamente a responsabilidade por aquilo que fizemos. Não é apenas pedirmos desculpa, devida sem dúvida, por aquilo que fizemos, porque pedir desculpa é, às vezes, o que há de mais fácil. Pede-se desculpa. Vira-se as costas. E está cumprida a função. Não.”

Poderíamos esperar que a seguir a esta afirmação viesse algo de consequente, mas somos antes instados a reconhecer o que de “bom e de mau fizemos no passado”, como se, equilibrando o “bom” e o “mau” do passado, se ilibasse o Portugal atual de um compromisso com uma política de reparação histórica. Portanto, se fizemos coisas más, mas também coisas boas, a dívida histórica está mais ou menos quitada, não é? Entre as “coisas boas” estariam a língua e a cultura, como se por lá não houvesse inúmeras e como se a imposição da língua e cultura portuguesa, pela bala, estupro e catequização jesuíta, na qual se inclui o padre António Vieira, não tivesse levado ao extermínio de uma parte importante das línguas, culturas e corpos dos povos originários do Brasil.

Se por um lado – ao contrário dos partidos de direita (PSD, IL e Chega) – saúda a presença de Lula da Silva e a “data” da sua vinda, por outro estabelece um paralelismo infeliz entre a data do “25 de Abril” e os “523 anos sobre o dia 22 de abril que assinalou o momento primeiro do contacto português com o território brasileiro”, equiparando democracia e colonização. Como se pode pedir desculpa pelo colonialismo e, ao mesmo tempo, considerar que “fomos e somos em tantos casos insubstituíveis (…) “plataforma entre oceanos, continentes, culturas, e povos”, exaltando a “nossa vocação histórica”?

No seu discurso estabelece inúmeras conexões entre a história do 25 de Abril e a história colonial, dizendo, por exemplo, que este “começou por existir por causa da descolonização”. É uma forma de reconhecer as raízes africanas da revolução, embora só até meio caminho. Sublinha o desgaste dos militares numa guerra longa e impossível de ganhar, em que “não percebiam com que objetivo, com que horizonte, com que fim” lutavam em África, mas em nenhum momento assume o contributo ativo das lutas de libertação africanas, de seus protagonistas e ideias para a Revolução de Abril.

Chegado ao Portugal “pós-colonial”, o Presidente fala, usando até o caso da sua família, sobre a diáspora portuguesa nos países que antes eram suas colónias e sobre as diásporas desses territórios – apresentados como irmãos – em Portugal. Sendo nós uma “Pátria de emigração”, como poderíamos “ser egoístas perante os dramas dos emigrantes que são dos outros” países, portanto, com os imigrantes que nos chegam? É interessante que prefira falar de um suposto egoísmo dos portugueses do que do colonialismo enquanto causa histórica dos “dramas” dos imigrantes e pessoas racializadas, designadamente, o racismo quotidiano, institucional e as desigualdades étnico-raciais estruturais.

Os bairros negros e pobres da periferia de Lisboa são, em parte, resultado de séculos em que pessoas negras não puderam acumular riqueza, porque foram escravizadas, porque foram sujeitas ao estatuto do indigenato e a leis que limitavam a sua progressão social. Por outro lado, há quem tenha feito fortuna à custa do seu trabalho, dos seus recursos, das suas terras, como mostra, por exemplo, o recente documentário Debaixo do Tapete, de Catarina Demony e Carlos A. Costa.

Na comitiva de Lula da Silva contavam-se Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial e irmã de Marielle Franco, e Sílvio Almeida, ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania e autor do livro Racismo Estrutural, ambos chamados a esse cargo porque o Brasil reconhece o pesado legado da escravatura no Brasil contemporâneo, não só pedindo desculpas, mas implementando políticas como as quotas nas universidades, a introdução do currículo afro-brasileiro, a criminalização do racismo ou a monitorização das desigualdades étnico-raciais através dos censos. Foi com pena, mas sem surpresa, que vimos Marcelo Rebelo de Sousa a perder a oportunidade de agradecer ao Brasil as políticas de reparação de dívidas históricas que também são nossas.

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

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