O 25 de Abril é a minha data preferida

É que da Revolução dos Cravos não ficaram cravos, ficaram sementes num solo inóspito, resultado de quase meio século de seca extrema, e cabe-nos a todos nós regá-lo.

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Megafone P3: O 25 de Abril é a minha data preferida Nuno Ferreira Santos

O 25 de Abril é a minha data preferida, talvez depois do meu aniversário, ambas datas que a mim me gritam resistência face à opressão. Há um sentimento de conquista e, acima de tudo, alívio que herdámos das gerações que de facto viveram sob a ditadura fascista. Um sentimento que lateja nos punhos com que seguramos cravos ao peito, quase como se também o tivéssemos vivido — mas não vivemos. E a verdade é que cada vez mais sinto esse confronto geracional quando a data se comemora.

Se por um lado continuo a sentir a urgência de celebrar Abril tão efusivamente quanto fizer jus a quem sobreviveu e resistiu à ditadura, por outro não consigo calar a inquietação que sinto — ingratidão, dirão alguns — com o nosso estado democrático onde tão negligenciados são os valores da revolução que o pariu.

Também esta inquietação me lateja nos punhos que ergo contra as ameaças fascistas que hoje ocupam a casa da democracia ou quando vejo quem mais poder e responsabilidade política teve desde que a ditadura foi derrubada celebrar os valores que desrespeita — num tom de missão cumprida, como se com o fim da ditadura tivesse havido um rompimento radical com os sistemas de opressão seculares em que a nossa sociedade se baseia.

Abril prometia muito mais do que simplesmente não vivermos sob um regime repressivo que perseguia, prendia e torturava quem a ele se opusesse. Ditadura será sempre um pobre termo de comparação para quem, felizmente e graças à força e sangue de tantos, não a viveu.

Peço, desde já, desculpa se esta possível ingratidão ofende, mas gratidão por não viver sob ditadura não me é suficiente. Eu exijo mais. Aliás, creio que é nosso dever, dos herdeiros de Abril, exigir mais. Porque Abril prometia concretizar o oposto de tudo de nocivo que a ditadura representava, um Estado que protegeria e garantiria todos os direitos básicos de que o povo havia sido privado. Abril prometia algo que, a meu ver, é indissociável de liberdade, prometia justiça.

E estas promessas não são noções ou desejos pessoais que projecto na Revolução dos Cravos, as pessoas que fundaram a nossa democracia, representando as vontades e necessidades do povo que serviam, definiram-nas concretamente no documento em que ela se sustenta, a Constituição da República Portuguesa.

O seu Artigo 65º promete, por exemplo, o direito de todos os cidadãos a habitações adequadas, com condições de higiene e conforto, promete a construção de habitações económicas e sociais e o estabelecimento de rendas compatíveis com o rendimento familiar. A realidade do povo e a realidade das políticas que têm governado a nossa ainda jovem democracia sabemo-las contrárias a tudo isto.

Este é um exercício que podemos igualmente fazer com os demais direitos consagrados na Constituição, as chamadas promessas de Abril, da saúde à educação. Muito se pergunta anualmente, por esta altura, o que falta para cumprir Abril, eu creio que a resposta é simples, mas de difícil execução: que quem tem responsabilidade política, desde as juntas de freguesia ao Palácio de Belém, sirva o povo e não os seus próprios interesses pessoais e económicos.

Que hoje se celebre, mas que amanhã e em todos os outros dias se lute. Nas urnas, nas ruas, no diálogo e em comunidade. É que da Revolução dos Cravos não ficaram cravos, ficaram sementes. Num solo inóspito, resultado de quase meio século de seca extrema, e cabe-nos a todos nós regá-lo de esperança e luta para que brote a liberdade e vingue a justiça.

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