Ninguém a viu cair

O dilema que lhe ocupava os dias nas últimas semanas era seu, não podia desinteressar-se dele com facilidade; mesmo que tentasse escapar nos momentos junto ao mar.

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Megafone P3: Ninguém a viu cair Adriano Miranda

Ao chegar à praia, junto ao mar, escapou-se do desassossego em que vivia, como um peixe na areia ainda a rabear. A velha terapia económica de submergir no mar, embora os gastos com o combustível do automóvel estivessem cada vez mais difíceis de comportar, costumava ter em si um efeito imediato. Mas tinha um problema, e este era grave. Não valia a pena tentar encontrar uma solução.

Na escola, quando era pequena, detestava problemas de matemática, nunca conseguia resolvê-los, mesmo que se tratassem de somatórios ou subtracções simples sobre laranjas: quantas laranjas comeu o João? Quantas lhe deram ou lhe tiraram? Enfim, pouco lhe importava a resolução, que o João ficasse ou não com laranjas, o problema era dele. Mais do que não ter interesse, o aborrecimento residia na própria palavra "problema", que se apresentava demasiado séria, inquietante; e se a muitos instigava a uma resolução, para si tratava-se apenas de um dilema que causava uma ansiedade desnecessária. Um problema por resolver e que, ainda por cima, não lhe dizia respeito.

Porém, o dilema que lhe ocupava os dias nas últimas semanas era seu, não podia desinteressar-se dele com facilidade; mesmo que tentasse escapar nos momentos junto ao mar, aquele estorvo não a abandonava. Tinha sido apanhada como um peixe na rede, sim, e por mais que rabeasse à procura de voltar para as águas da serenidade possível, apenas conseguia estrebuchar na areia fervente e fazer parte de uma receita japonesa, pronta a ir para a mesa, ainda a mover as guelras. Era assim que se sentia, cozinhada viva.

A praia, em vez de surtir o efeito relaxante habitual, tornou-se um cubículo mórbido onde circulavam os seus pensamentos ao som da ondulação, avançando e recolhendo, mas como se fosse sempre a mesma onda a bater na areia. Para trás e para a frente, num movimento circular que lhe parecia infinito, até à insanidade. Decidiu calçar-se e caminhar até ao pontão. Talvez um pouco acima do areal o ar se tornasse mais fresco.

Guardar um problema daquela envergadura dentro si, uma vez que não o partilhara com ninguém, tinha certamente efeitos nefastos. Mas, por outro lado, de nada lhe valia partilhá-lo com alguém. E que efeitos nocivos terá um problema quando se sabe uma data aproximada para o seu fim? Sim, aquele dilema estaria resolvido em breve. A sua solução era o extermínio de ambos: o problema e a pessoa que o detinha.

Teve vontade de rir, estava a ser fatalista. Talvez houvesse ainda esperança. Não era pessoa de desistir com facilidade. Estava doente, sim, mas a medicina operava verdadeiros milagres em tantas pessoas. De repente, um sentimento de esperança, quase alegria, apoderou-se de si, lavando por momentos as suas ideias tão escuras. Seria um dos casos raros, um exemplo a exibir nas notícias. Uma onda imprevisível, alta e forte galgou o pontão. Ninguém a viu cair.

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