Para quando a desestigmatização da saúde mental?

“Eu sei que preciso de ajuda, mas eu sinto-me... como hei-de dizer, inferior, pequeno, por precisar de ajuda”, disse-me um paciente. Mas porquê? A doença mental é uma doença como todas as outras.

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Em pleno ano de 2023 ainda há pessoas que se sentem inferiorizadas por precisarem de ajuda psiquiátrica e/ou psicológica Unsplash

Em pleno ano de 2023 ainda há pessoas que se sentem inferiorizadas, que se sentem “malucas” por precisarem de ajuda psiquiátrica e/ou psicológica. É tão triste pensar que andam por aí pessoas que não encontram uma saída desse poço negro, uma solução, um caminho para a felicidade. É ainda mais triste e dilacerante quando pensamos que uma pessoa preferiu recorrer ao suicídio ao invés de procurar ajuda (qualificada ou não, porque, às vezes, ser ouvido é o melhor remédio).

Segundo o Instituto Nacional de Estatística, em 2019 habitavam 10 295 909 pessoas em Portugal, de entre as quais 4 859 977 eram homens e 5 435 932 mulheres. Nesse mesmo ano, pré-pandémico, a taxa de mortalidade por suicídio em Portugal foi de 9,5%, o que equivale a um total de 978 mortes por suicídio. Isto daria uma estimativa de 81 mortes por mês, duas mortes por dia. Ainda no âmbito destas tristes estatísticas, em 2019 a taxa de mortalidade por suicídio nos homens era de 15,2% contra os 4,4% das mulheres. Convertendo isto, daria cerca de 739 mortes do sexo masculino e 239 do sexo feminino.

Porquê esta tão grande disparidade entre homens e mulheres? Mais do dobro de suicídios na população masculina. A resposta é bastante simples. Apesar de haver cada vez menos estigmatização na procura de ajuda psiquiátrica e psicológica, a procura masculina no contexto de saúde mental é ainda bastante inferior, segundo a Mental Health Foundation. E esta é a razão pela qual decidi escrever este texto.

Encontro-me no 6.º ano de Medicina na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e deparo-me todos os dias com doentes. É alarmante a quantidade de doentes que têm antidepressivos e/ou ansiolíticos prescritos. Atrevo-me a dizer que a percentagem de doentes aos quais foi prescrito pelo menos um ansiolítico ou antidepressivo ronda os 100%. O trigger para este artigo foi um senhor que vi precisamente esta semana. O senhor, chamemos-lhe Sr. X, disse o que passo a citar: “Oh senhores doutores, eu vou ser sincero... é que eu sei que preciso de ajuda, mas eu sinto-me... como hei-de dizer, inferior, pequeno, por precisar de ajuda para a cabeça.”.

Porquê que ele se sentia inferior? Porque a esposa dele estava internada por patologia do foro psiquiátrico e ele sentia que, além de ser homem, tinha de ser forte por ela, tinha de estar bem por ela. Esta história tocou-me no coração. O Sr. X achava piamente que, por ser homem, não se podia sentir deprimido, ansioso ou triste ao ponto de precisar de ajuda psiquiátrica e/ou psicológica. Pior ainda, sentia-se inferior. Mas inferior porquê? A doença mental é uma doença como todas as outras, se não mais grave até. Não é preciso de voltar a falar de números, pois não? Continuando... mas o Sr. X até reconhecia que precisava de ajuda e acabou por aceitar a ajuda e ser encaminhado para uma consulta.

De facto, o Sr. X não é o único caso que conheço e está longe de o ser, infelizmente. Vi também uma senhora, chamemos-lhe, Sra. Z., que tinha acabado de dar entrada no Serviço de Urgência do Hospital São João. Deu entrada por descompensação de uma patologia cardíaca, mas isso é um artigo para outra altura. Ora, a Sra. Z., apesar de muito sorridente, tinha também depressão major diagnosticada e está medicada.

A depressão, de facto, é facilmente mascarada. Disse-me ela que tinha vindo pelo INEM. Perguntei, na minha ingenuidade, se vivia com alguém e esse alguém teria chamado o INEM para prestar auxílio. Nisto, vejo-a perder o sorriso e começa a verter umas lágrimas. Por esta altura, pensei que tivesse falecido recentemente o seu marido, filho ou outra pessoa que lhe fosse querida. Reforcei que estava ali para a ajudar no que precisasse e que podia confiar em mim. A Sra. Z, entretanto, diz, entre choro, que não vivia com ninguém e que não vivia em lado nenhum, que vivia na rua. Não era assim tão próxima dos filhos e que, com o estado da economia portuguesa (e global) da actualidade, com as rendas brutais e preços dos produtos que se praticam, que a sua reforma não chegava para os gastos. Então fora expulsa de casa.

Pensem bem, uma senhora com perturbação depressiva major diagnosticada, não tem rendimentos suficientes para sobreviver e ainda é expulsa de casa, sem qualquer suporte familiar. Disse-lhe que iríamos falar com um assistente social para ajudar no seu caso quando ela tivesse alta e, para surpresa minha, ela nem sabia que os hospitais tinham essa possibilidade. Entristeceu-me genuinamente uma senhora que claramente precisa de ajuda, mas que nem sabe que a ajuda existe e está acessível para ela. A senhora está neste momento internada e desde que a ouvi pela primeira vez, não houve um dia em que não pensasse nela. Será que recuperou e já teve alta? Será que já teve a ajuda que precisa? Será que já tem casa? Será que está feliz?

Em pleno ano de 2023 e, felizmente, com a diminuição deste estigma, ele ainda existe, infelizmente. Pior ainda, vinco, a depressão é facilmente mascarada. Por vezes, está presente nas pessoas que vemos e falamos todos os dias e nem fazemos ideia do que vai na sua mente, nem sabemos se precisa de ajuda ou não. A meu ver, temos de evoluir imenso enquanto sociedade, sermos gentis uns com os outros e atentar nas nossas palavras. Nunca sabemos o que se está a passar na vida de outrem, dentro de quatro paredes e, ainda menos, dentro dos ossos do nosso crânio. Comecemos por perguntar se outrem está bem e que pode recorrer a nós quando precisar, estendamos a mão para ajudar, em vez de apontar o dedo e censurar alguém que só precisa e procura ajuda e que, tal como todos nós, merece a felicidade.

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