Em Macau, Portugal deve estar do lado da liberdade

A lei já aprovada na generalidade em Macau considera crime artigos de opinião como este, pelo que quem os escrever ou publicar poderá ser extraditado (ainda que não de Portugal) e preso.

O chefe do executivo de Macau (CE), Ho Iat-seng, em visita a Portugal, aprovou uma proposta de lei que permitirá condenar portugueses que critiquem, em Portugal, as políticas ou os órgãos políticos da China. Veremos se o Presidente, o primeiro-ministro e o ministro dos Negócios Estrangeiros vão reagir publicamente ou se exercerão autocensura, silenciando a sua voz ao ritmo a que o CE tem feito silenciar a voz da população que governa, deixando a população de Macau, e os portugueses que lá residem, ainda mais expostos aos atropelos crescentes dos direitos fundamentais.

A lei em causa é a Lei de Segurança Nacional (LSN), já aprovada na generalidade, por voto unânime, na Assembleia Legislativa de Macau. A nova LSN não visa punir crimes contra a segurança nacional, pois já existia uma lei razoável, inspirada na de Portugal, que não precisou de ser aplicada uma única vez. O que não existia, porém, era uma lei que permitisse, sob a falsa, mas impiedosa, capa de “segurança nacional”, criminalizar a opinião. É esse o propósito da nova lei: criminalizar a crítica e a discordância, para as emudecer.

Após estabelecer que a lei visa, para além da segurança, proteger a prosperidade e estabilidade social, e os legítimos direitos e interesses das pessoas, “segurança” é definida como abrangendo “o bem-estar do povo, o desenvolvimento sustentável da economia e da sociedade e outros interesses relevantes”. A proibição de actos contra a segurança proíbe-nos de agir contra o bem-estar, o desenvolvimento sustentável e interesses relevantes… Conceitos desabitados de conteúdo preciso, cujo teor será fixado por “decreto” à medida das necessidades. Praticamente, qualquer acto pode ser qualificado pela polícia como um atentado à segurança nacional – em vez de Estado de direito, teremos Estado de polícia.

A lei passará a considerar crime artigos de opinião como este, pelo que, quer quem o escrever, quer quem o publicar – no caso, o director do PÚBLICO – cometerá um crime contra a segurança nacional e poderá ser extraditado (ainda que não de Portugal), condenado e preso. Assim poderá suceder a quem disser, em Macau, Portugal, Sydney ou São Paulo, que a China é uma ditadura, que Tiananmen foi um massacre, que existem campos de detenção indefinida, tortura, que os tribunais não são independentes, os opositores políticos são presos por convicções políticas, seguidos pelos seus advogados, entre um rol de outras violações de direitos humanos. Tudo isto é verdade. Mas dizê-lo – dentro ou fora de Macau – passará a ser crime. E não simplesmente crime de difamação. Mas crime contra a segurança nacional impiedosamente punido.

Olhemos para a proposta de lei. O crime de subversão passará a determinar que quem, por qualquer meio ilícito, “tentar prejudicar” os órgãos do poder político central do Estado será preso entre 10 e 25 anos. Enquanto a lei vigente, como a de Portugal, só pune actos praticados por meio de violência ou outros meios ilícitos graves, a nova lei bastar-se-á com “qualquer meio ilícito”. Porquê? Porque passará a punir a crítica. E sendo criticar um meio ilícito, o crime está completo. A receita serão 10 a 25 anos de prisão. E “prejudicar”, não estando definido, significará, nos manuais da polícia e dos juízes, qualquer coisa que não seja boa.

E depois há a sedição. É punido por sedição aquele que incitar à prática do crime de subversão. Mas há mais. Foi criado o crime de “instigação ou apoio à sedição”, praticado em público ou em privado. Como o crime de sedição consiste em “incitar” e o de instigação em “persuadir, induzir, aliciar”, parece que passará a ser crime “persuadir, induzir, aliciar” outra pessoa a “incitar” uma terceira pessoa a tentar prejudicar um órgão do poder político. O que induz, o que incita e o que tenta cometeriam três crimes distintos. Tudo atentados à liberdade de expressão.

E, como se não bastasse, assentando na tradição chinesa, mas distanciando-se da matriz portuguesa, a lei pune de forma genérica os chamados actos preparatórios, que não são actos de execução do crime, mas anteriores, e que raramente são punidos (não o são no homicídio), o que torna esta infindável senda criminalizadora ainda mais desafiante: quem induzir alguém a que se prepare para incitar outrem a preparar-se para tentar prejudicar um órgão do poder político será vergastado pela nova LSN.

E atravessar a fronteira passará a ser problemático. Será crime “submeter solicitações” a indivíduos ou organizações de fora com o fim de incitar ao ódio ao Governo Popular Central ou de perturbar ilicitamente os órgãos do poder político “na definição e execução das leis e políticas”, o que inclui recolher e divulgar “notícias falsas” e “efectuar promessas ou dádivas”. Quem solicitar por telefone uma opinião fora de portas para se opor à aprovação de uma lei ou política governativa será elevado a criminoso e traidor, como se o mundo fosse um armário de 200 gavetas fechadas. Nos crimes descritos, não existe suspensão de pena ou liberdade condicional, e a prisão preventiva é obrigatória.

Leis como esta – vagas, obscuras e abrangentes, mas punidas em doses cruéis – constituem uma prevenção repressiva delineada com o propósito de provocar autocensura. O medo torna-se o grande motivador e Macau vai-se transformando num Estado de polícia. A pressão já rasgou a fronteira da política, entrou no jornalismo, no cinema, na literatura e por aí fora. A liberdade não existe para proveito de políticos e activistas, mas para benefício da cidadania. A eurodeputada Isabel Santos parece ter já sido identificada pelo Governo de Macau como potencial alvo da nova lei. Portugal não pode admitir tal conduta.

A China vinculou-se juridicamente perante Portugal, por via da Declaração Conjunta – um acordo internacional depositado na ONU – a respeitar os direitos e liberdades dos residentes durante 50 anos. Portugal, por seu turno, vinculou-se ética e politicamente perante Macau e perante os portugueses a exigir à China que pare de desrespeitar as suas obrigações e de atrofiar a comunidade de Macau sob a ameaça de prisão indefinida. Fazer essa reivindicação não é interferir num país estrangeiro. É exercer o direito – que constitui um dever – de exigir à contraparte o cumprimento de um acordo internacional.

O Presidente e o Governo deverão denunciar esta conduta publicamente, pois é também publicamente, e de forma notória, que a vida dos 600 mil habitantes de Macau vem sendo desvirtuada. E deverão avisar publicamente o chefe do executivo que aprovar a nova Lei de Segurança Nacional será rasgar a Declaração Conjunta e um acto de desrespeito por Portugal e pela União Europeia. Em Macau, Portugal deverá estar do lado da liberdade, não dos interesses. Haja, por uma vez, a coragem que a integridade política requer.

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