A arte do desassossego, dos heterónimos aos avatares

Doravante, a realidade do nosso quotidiano não tem de ser monótona e melancólica, podemos sempre escolher a nossa personagem, adaptá-la ao cenário e o guião ser coreografado de muitas maneiras.

O filme vencedor dos Óscares deste ano, intitulado Tudo ao mesmo tempo em todo o lado é muito inspirador, uma mistura de alegria, absurdo, caos e criatividade, mas, também, de uma inquietação que nos interpela e leva a fazer várias associações e analogias. Uma dessas associações transporta-nos, curiosamente, aos heterónimos de Fernando Pessoa e à realidade aumentada do poeta sob a forma de múltiplos desdobramentos de personalidade vertidos em obra literária. Um século depois, estamos a falar de realidade aumentada e virtual em ambiente designado por metaverso, desta vez sob a forma de um desassossego muito diferente. Seja como for, em ambos os casos estamos a lidar com a arte do desassossego e da existência, sob a forma de heterónimos num caso, de seres digitalizados ou avatares do metaverso, no outro.

Depois de ver o filme ocorre-me perguntar qual dos avatares será o nosso Bernardo Soares e que livro do desassossego vai ele escrever? Com os progressos da inteligência artificial tudo pode acontecer, quem sabe, talvez possamos encomendar a nossa biografia pessoal a um dos nossos avatares-heterónimos.

Bernardo Soares é considerado um semi-heterónimo de Fernando Pessoa, uma vez que é muito parecido com o poeta do Livro do Desassossego, uma coleção de quinhentos fragmentos sobre o absurdo da existência, a inadaptação à realidade e a relativização das verdades, e onde ser é quase impossível tal é a dispersão do indivíduo, a sua instabilidade e inquietação. Perante tanto desassossego a arte da existência transforma-se numa verdadeira obra de arte só acessível a alguns privilegiados.

O filme é um produto da liberdade absoluta para criar no cenário do metaverso, tem a coreografia de um produto artístico e cultural e, por isso, não se cola bem ao desassossego da nossa existência atual. Diz o realizador que o filme é uma história de caos que oscila entre o absurdo e o fantástico, mas, também, um abraço caloroso pleno de alegria e criatividade.

Nada impede, porém, que no futuro próximo a arte da nossa existência faça o percurso desse livro interminável do desassossego e que, muito em breve, a composição e o desdobramento da nossa personalidade passem por áreas tão diversas, mas igualmente complementares, como o silêncio e a solidão da natureza, as rotinas da vida familiar e profissional e as realidades paralelas do metaverso em ambientes múltiplos, ora profissionais, ora artísticos ou meramente recreativos. Podemos, mesmo, transportar algumas dessas composições de personalidade para o mundo real e sermos, afinal, verdadeiros e genuínos de muitas maneiras e em muitos universos.

No final, o que fica por saber é se o nível de adição digital e o estádio de loucura que já atingimos são compatíveis com as nossas rotinas e os laços da nossa sociabilidade mais elementar. E saber, ainda, se o Bernardo Soares da realidade virtual está disponível para ser o argumentista principal e em condições de escrever esse guião feito de múltiplos universos e linhas temporais, o tal livro do desassossego que serve de guia à arte da nossa existência e em que nós desempenhamos, presumivelmente, o papel de ator principal.

E aqui chegados, mergulhamos, porventura, no caos absoluto e criativo, tal como no filme. As tecnologias digitais interativas da realidade aumentada e virtual, os dispositivos nanométricos e neuronais das ligações cérebro-computacionais e a inteligência artificial das máquinas sobredotadas podem chamar a si o universo pessoano, reinterpretá-lo e coreografá-lo e, mesmo, propor que os nossos avatares se convertam em heterónimos pessoais que nós podemos utilizar em diferentes momentos e ocasiões.

Ou seja, doravante, a realidade do nosso quotidiano não tem de ser monótona e melancólica, podemos sempre escolher a nossa personagem, adaptá-la ao cenário e o guião ser coreografado de muitas maneiras. Nesse contexto, a vida pode ser muito mais interessante já que algo me diz que os avatares da família metaverso serão mais divertidos que os heterónimos de Fernando Pessoa. Finalmente, neste novo caldo de cultura, onde as instituições serão, elas próprias, um absurdo criativo original, a relação convencional entre o ator e o sistema, tal como a conhecemos, necessitará de ser completamente reinventada e reprogramada.

Nas palavras do realizador de Tudo em todo o lado ao mesmo tempo, doravante, a vida será uma mistura de alegria, absurdo, caos e criatividade. O que não é coisa pouca.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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