Projecto une ucranianos em Portugal para combater desinformação russa

Analista e ex-jornalista Michael Bociurkiw diz que o objectivo é aproveitar os jornalistas ucranianos deslocados para criar um centro de media ucraniano em Portugal.

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O analista elogiou "a campanha corajosa da Ucrânia extremamente bem-sucedida" nas redes sociais e criação de centros de media para jornalistas locais e estrangeiros Reuters/OLEKSANDR KLYMENKO

Vai nascer em Portugal um projecto de combate à desinformação russa, juntando jornalistas ucranianos a residir no país, revelou à Lusa o analista canadiano de política internacional Michael Bociurkiw. De visita a Lisboa na passada semana, o também ex-jornalista de ascendência ucraniana, comentador de estações internacionais como a CNN e BBC, afirmou que a intenção é encontrar parceiros e financiamento de fontes privadas, envolvendo entidades como a União Europeia para iniciar o que chama de hub de media ucraniano em Portugal.

O projecto, a lançar nas próximas semanas, explicou, assenta no combate "ao alto grau de manipulação da desinformação russa", aproveitando "a enorme quantidade de jornalistas ucranianos que foram deslocados pela guerra para criar um centro de media em Lisboa, que criará conteúdo factual muito atraente para uso mundial". O plano é começar em inglês e evoluir também para português, espanhol, em histórias impressas e igualmente em vídeo e áudio, publicadas na Internet e nas redes sociais.

A razão pela qual Portugal está a ser considerado é porque está estrategicamente localizado, o seu fuso horário e ainda "o seu papel maravilhoso" em termos de acolhimento de refugiados ucranianos. "Pelo que vi nas minhas visitas aqui, há talentos incríveis disponíveis para colaborar, por isso é um projecto muito empolgante", afirmou Michael Bociurkiw, parceiro do Eurasia Centre do Atlantic Council e que tenciona mudar-se para Portugal, onde permaneceu quatro meses a escrever um livro durante a pandemia de covid-19.

Bociurkiw passou os últimos tempos na Ucrânia, onde disse ter realizado centenas de entrevistas para consolidar os seus espaços de opinião nas cadeias televisivas, mas também em órgãos como o The Washington Post. Estava no Donbass quando começou a guerra na Ucrânia ao serviço da Organização para a Cooperação em Segurança na Europa (OCSE), antes de ter trabalhado também na UNICEF e Organização Mundial de Saúde.

Além do talento que afirmou ter encontrado, o comentador frisou também a "incrível hospitalidade", que faz os ucranianos "sentirem-se muito em casa" e apontando também que precisam de recobrar a saúde mental, após o que vivenciaram na guerra na Ucrânia. "Acho que também daria algum prestígio ao país, porque [o projecto] poderia transformar-se numa entidade que ajudaria a reequilibrar o que estamos a enfrentar agora, que é apenas um incrível esforço russo para distorcer a realidade de tudo o que está a acontecer", comentou.

Para analista, que afirmou ter passado muito tempo na Ucrânia, fala a língua local e teve uma educação ucraniana, com um "conhecimento muito profundo" da história e cultura local, o que está a passar actualmente é uma repetição da história, seja a campanha da "grande fome" em 1932-33, o roubo de cereais, os tempos do Gulag, deportações forçadas, e a tentativa de destruição religiosa. "Seja qual for o aspecto para que se olhe, a supressão da cultura está a acontecer novamente em escala industrial", afirmou à Lusa.

Por exemplo, Bakhmut, que considera que ficará para a história como a batalha a recordar, tem um histórico de disputa muito antigo, e não é a primeira vez que os russos estão a tentar tomar esta cidade no leste do país, tudo associado a uma campanha de desinformação e manipulação, uma área que o comentador tem estudado.

"Os russos estão a fazer manipulação e desinformação, distorcendo os factos numa escala absolutamente maciça", acusou, recordando que já tinha testemunhado isso quando integrou a equipa da OCSE enviada para o local do abate de um avião comercial da Malaysia Airlines no Donbass, em 2014, e "vieram com uma realidade alternativa que ninguém poderia acreditar".

Mas com a invasão da Ucrânia, em Fevereiro do ano passado, a desinformação "subiu para níveis ainda mais altos, mais amplos e mais sofisticados", descreveu, dando o exemplo do seu país, quando o Governo canadiano descobriu uma influência muito profunda de mãos russas no chamado protesto dos camionistas que deixou Otava paralisada várias semanas.

"Descobriu-se naquela época que trolls [agitadores] russos, contas russas no Twitter e assim por diante estavam a operar de modo muito maciço para criar disrupção e narrativas falsas", prosseguiu, dando conta que o Governo canadiano tem agora muito dinheiro no orçamento federal para combater este tipo de acções e eventuais manipulações em eleições.

Bociurkiw não entende aliás o motivo para o Canadá não expulsar diplomatas russos desde o início da guerra, quando a conta do Twitter da Embaixada da Rússia em Otava "está cheia de mentiras e desinformação". E há também, continuou, "um braço da máquina de propaganda russa" que se vê nos padrões de votação na Assembleia Geral da ONU, com alguns países africanos ou sul-americanos a abster-se ou a votar favoravelmente em iniciativas de Moscovo: "Isso mostra até que ponto as coisas estão a acontecer".

Este esforço de manipulação global da Rússia, defendeu, já acontece há muito tempo e só recentemente o ocidente acordou para esta realidade e começou a alocar fundos significativos para combatê-la, mas com muito atraso. "Se alguém escrever uma história como jornalista ou comentador criticando a Rússia, verá os seus trolls de repente acordarem e atacarem com todos os meios à sua disposição", descreveu.

Em contrapartida, o analista elogiou "a campanha corajosa da Ucrânia extremamente bem-sucedida" nas redes sociais e criação de centros de media para jornalistas locais e estrangeiros, numa capacidade de gerar informação em que o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, é "o director de marketing" do país. "Ele realmente conseguiu dar um passo à frente e a sua maior conquista não foi apenas encorajar o seu próprio povo a ser corajoso", defendeu.

"Mas [Zelensky conseguiu] também convencer Washington, Lisboa, Londres e outras capitais a apoiar a Ucrânia, passando a mensagem de que, se [o Presidente russo, Vladimir] Putin não parar agora, podem esperar que ele mais cedo ou mais tarde bata à sua porta, seja dos europeus ou ex-repúblicas soviéticas", sustentou.

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