Comportamento de rebanho

O que levaria alguém a chegar junto de dois contentores destinados a lixo comum e a escolher empilhar o seu lixo no topo daquele que está a abarrotar.

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"Não gosto de ver o largo com lixo. Incomoda-me visualmente (não peço que alguém compreenda…)" Jas Min/Unsplash

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A casa onde habito situa-se num largo servido por cinco contentores subterrâneos — a Câmara de Cascais chama-lhes "Ilhas Ecológicas" —, dois para lixo comum, um para vidro, outro para plástico/metal e mais um para papel/cartão. Aquando da instalação, a autarquia divulgou as vantagens dos novos equipamentos. Cito: "Estas ilhas ecológicas são mais higiénicas, uma vez que impedem a libertação de odores. Para além disso, são mais funcionais, já que permitem uma recolha segura e cómoda de resíduos urbanos seletivos e indiferenciados."

Não tenho conhecimentos para atestar ou contestar a segunda vantagem, mas não podia estar mais de acordo com a primeira. Testemunho na primeira pessoa: saio de casa com os meus saquinhos de lixo hermeticamente fechados com atilhos bem apertados, chego à ilha e distribuo o lixo pelos respetivos contentores sem franzir as ventas, tapar as narinas ou virar a cara. O sistema dos contentores subterrâneos resulta!

A não ser que:

a) as tampas estejam abertas — muito frequente.
b) existam sacos do lixo fora das ilhas — frequente.
c) o lixo transborde dos caixotes — pouco frequente nos contentores de lixo comum; muito frequente nas ilhas para reciclagem de plástico/metal e papel/cartão.

Compreendo a razão de, por vezes, haver cartão e plástico fora dos contentores: quem é que, depois de ter passado uma ou duas horas a montar um móvel novo, ainda tem reservas de energia para desmanchar a caixa de cartão que albergava tábuas e parafusos? Ou, quem é que, depois de passar uma tarde inteira a tentar conectar a tentar conectar a nova smart tv com ecrã LCD-LED 4K a 120 Hz, conetividade multidispositivos, assistente inteligente e reconhecimento de voz à rede Wi-fi tem paciência para embrulhar o plástico bolha que protegia o aparelho? Nem um santo.

Depois, há quem, talvez acometidos de preguiça (quem disso não sofre?), mas simultaneamente de teimosia (agora usa-se "resiliência"), e movidos por crença cega na sua habilidade, persistência e força, tentam até à exaustão enfiar objetos dos mais variados formatos (quadrados, retangulares, redondos, triangulares, etc.), num bocal de tamanho inferior ao objeto que pretendem inserir. O resultado (frequente) é a obstrução da entrada do bocal.

Louve-se os gestos de caridade. Há quem deixe itens em bom estado (livros, brinquedos de criança, entre outros) junto às ilhas para que possam ser reciclados por outras famílias. Pena que há quem vasculhe, escolha e deixe o resto espalhado e, às vezes, estragado. Tocar com cuidado, deixando uma marca boa ou marca nenhuma, faz do mundo um lugar mais bonito.

(Sim, sou um lírico.)

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Na última quinta-feira, o meu filho fez uma viagem às ilhas ecológicas.

— Pai, acreditas que um dos contentores estava cheio a transbordar e que o outro estava vazio?

— Como assim?

— Então, um deles estava com a tampa aberta e uma pirâmide de lixo a sair pela boca, o outro com a tampa fechada e sem lixo à vista. Eu espreitei.

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Interroguei-me durante um par de minutos sobre o que levaria alguém a chegar junto de dois contentores destinados a lixo comum e a escolher empilhar o seu lixo no topo daquele que está a abarrotar de lixo de outros que também optaram por não abrir o contentor vazio. Distração? Desleixo? Preguiça? Nojo? Incivilidade? Todas as opções me pareceram viáveis, mas não me decidi por nenhuma, pelo que resolvi espreitar os caixotes a partir da janela do quarto do miúdo.

— Vais ficar aí?

— Não, só vim ver.

— Para quê?

— Para observar o fenómeno do comportamento de rebanho. Deve ser isso que explica aquilo que viste no lixo.

— Comportamento de rebanho?

— Sim, situações onde os animais e as pessoas reagem todas da mesma maneira, de forma automática. Simplificando: ao verem a pilha de lixo num dos contentores, as pessoas fizeram o mesmo e juntaram mais lixo. Ou isso, ou ao ver a outra tampa fechada e não querendo tocar na pega de inox para a abrir, estejam a reivindicar anonimamente um pedal de abertura.

— Ambas fazem sentido.

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Desci para o rés-do-chão com o intuito de desmanchar a pilha e interromper o padrão do rebanho. Fi-lo, em primeiro lugar, com uma motivação puramente egoísta: não gosto de ver o largo com lixo. Incomoda-me visualmente (não peço que alguém compreenda…).

Quase a chegar, percebi que um vizinho se antecipara e que, entretanto, um dos sacos caíra e que o lixo ficara derramado na calçada.

— Vinha fazer o mesmo — disse-lhe.

— Eh pá, já viu isto? As pessoas são umas porcas, é o que é!

Ocorreu-me a lista de hipóteses que elaborara há minutos: Distração? Desleixo? Preguiça? Nojo? Incivilidade?

— Pois, se calhar é isso – respondi.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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