A malha do trigo

Foi este o mundo que descobri, de manhã e à noite via pessoas a enlatar-se nos autocarros e durante o dia falava com colegas que achavam que azeite Oliveira da Serra está ao alcance de toda a cozinha.

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Megafone P3: A malha do trigo Pexels

Desinstalei a grande maioria das minhas redes sociais há coisa de um ano. Ganhei tempo de vida e poupei sanidade mental, principalmente ao abandonar o Twitter. Quando deixei de me deparar com radicais políticos em luta logo pela manhã, trazidos pelo algoritmo, e comecei a reparar na gente que apenas tenta chegar a tempo ao trabalho, o mundo perdeu um bocado da violência e da cor do dia anterior.

Enquanto antes parecia a todo o momento que a sociedade estava partida e irreconciliável entre dois, ou mais, exércitos opostos, sedentos de sangue, a sociedade tornou-se para mim um sítio pacato, onde a grande maioria não vê na inflação uma variável macroeconómica de causas incertas e consequências imprevisíveis, mas apenas menos comida na despensa.

Não deixa de ser uma sociedade partida, mas passa a sê-lo de forma diferente. Se antes era um campo de batalha, passa a ser uma eira de trigo, onde quase todos fazem de cereal e os poucos que restam pegam nas alfaias e malham os primeiros tanto quanto lhes apetecer. De quatro em quatro anos ainda se viram ao trigo e dizem "levanta-te, vai votar". Mas o trigo seco não se levanta, e pouco depois tornam as alfaias a bater.

Foi este o mundo que descobri ao fugir dos algoritmos das redes sociais. Pouco muda. Pouco se discute. As coisas apenas acontecem. Uns sofrem, outros ganham. E o tempo passa. Depois, chegou Setembro e a universidade, na faculdade de economia da Nova, Nova SBE, para quem gostar do selo internacional. Ao mesmo tempo chegou o quarto arrendado no Cacém, a pior das eiras de trigo em Portugal.

Passei então a viver os meus dias em pólos opostos deste nosso país, de manhãzinha e à noite via pessoas a enlatar-se nos autocarros e durante o dia falava com colegas que achavam que azeite Oliveira da Serra é algo ao alcance de todas as cozinhas. Nos dias de chuva, perto de minha casa, assistia a pessoas a vasculhar os contentores por guarda-chuvas partidos, como viam outros fazer, enquanto na universidade passava ao lado de estudantes em roupa de marca à espera do Uber que os salvasse da caminhada a céu aberto.

E aí conheci um algoritmo novo para mim, o do quotidiano. Ocorreu-me que o trigo malhado acha que o mundo é apenas feito de trigo malhado, que os comboios cheios, os candeeiros de rua apagados e os quatro euros por hora de trabalho são problemas com que todas as pessoas se identificam. E ocorreu-me a seguir que os malhadores do trigo julgam que o formato das bolsas Longchamp, o banco que faliu na América e a marca do carro que gostariam de receber são assuntos do dia-a-dia do português comum.

E assim, vi duas bolhas isoladas, a do trigo e a dos seus malhadores, separadas por uma muralha que apenas muita sorte, ou azar, permite atravessar. Em ambas, ouço as pessoas corroborarem as crenças do próximo, perpetuando-as. Numa das bolhas, acredita-se que a vida é trabalhar e rezar a um deus ou ao outro para que o salário chegue ao fim do mês, na outra concorda-se que o mundo é bom e sorri-se, sorri-se tanto. Como é que se podia não sorrir? Basta aos meus colegas olhar pela janela da sala de aula para ver o mar, não prédios brutais de betão descolorado construídos como calhou.

E depois fico eu, a fazer piscinas de um lado ao outro, por vezes a partilhar Bolts com velhas que saíram do turno às sete da manhã, mas já é meio-dia e ainda não veio o autocarro, noutras vezes a discutir os programas do governo com colegas, e se importa mais o direito à propriedade privada ou à habitação, e noutras ainda apenas a pensar sobre este país dividido.

Se os algoritmos do Twitter e afins amuralham os utilizadores em bolhas de interesses semelhantes que volta e meia discutem entre si, seja a gala do Big Brother, ou os cartazes do Marquês, este algoritmo do quotidiano quebra o mundo de forma tão vincada que são poucos os que como eu conhecem com proximidade ambos os lados da moeda.

Não me arrependo de ter desinstalado o Twitter, mesmo conhecendo este novo e maior lado do mundo. Não acho que devamos esquivar-nos dos problemas. O que me incomoda é o sentimento de que me vou aproximando intelectualmente do trigo, começo a acreditar que o mundo está mau e não há nada a fazer. E acredito-o não porque como ele não conheço a outra bolha, mas porque conheço ambas, e se numa nada se faz por se crer que nada se pode, na outra faz-se o mesmo por se achar que quase nada é preciso. E assim, a malha do trigo persistirá.

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