Comer menos ou pensar em desistir: um salário já não chega para estudar longe de casa

Comprar comida mais barata (e menos nutritiva), prescindir de refeições ou comer menos começa a ser comum. No Dia Nacional do Estudante, perguntámos como é ser um.

#MAM Maria Abranches - 22 de Março 2023 - Maria Livramento, estudante da FFUL, Cidade Universitária, Lisboa.
Fotogaleria
Maria Livramento, estudante da FFUL Maria Abranches
#MAM Maria Abranches - 21 de Março 2023 - Pedro Teles, o estudante que denuncia a cantina sobrelotada, Instituto Superior Técnico, Lisboa.
Fotogaleria
Pedro Fialho, aluno do Instituto Superior Técnico Maria Abranches
PP - 23 MARCO 2023 - PORTO - MANIFESTACAO DOS ALUNOS DO ENSINO SUPERIOR CONTRA FALTA HABITACAO PROPRINAS CANTINAS SOFIA TAVARES
PUBLICO
Fotogaleria
Sofia Tavares, estudante de Cinema Paulo Pimenta

Numa das viagens entre Lisboa e Porto, Sofia Tavares perguntou ao pai se seria melhor, simplesmente, deixar de estudar. Um ano antes, tinha entrado na Escola Superior de Teatro e Cinema. Três quartos depois, rendas incomportáveis e uma despesa mensal de “mais de 700 euros”, que exigia um grande esforço familiar, fez as malas e voltou para o Porto, de onde é natural.

Apesar de os pais não terem “uma base económica muito estável”, não quiseram que a jovem de 19 anos desistisse de estudar. A solução foi ingressar no mesmo curso, Cinema, mas na Universidade Católica do Porto. Não é a escola onde queria estudar e, ainda assim, paga “cerca de 500 euros de propinas”, mas o alívio na taxa de esforço familiar vê-se: “O meu pai anda muito mais descansado”, diz. Com a mãe desempregada, conta com o apoio dos avós. Ainda assim, o aumento do custo de vida tem obrigado a algumas privações: “Noto que racionamos mais a comida. Comemos muito menos, e mais alimentos como a batata, couve e cenoura.”

No ano passado, esteve a trabalhar, mas este ano é “complicado”, porque o horário das aulas vai mudando. “Acabo por ser um peso económico para a minha família”, desabafa.

Todos os meses Maria Livramento precisa de 800 euros para fazer face às despesas enquanto estudante deslocada. É mais do que “um salário” que os pais lhe dão, reflecte. “Tendo em conta o panorama de outras pessoas, considero que tenho alguma sorte, porque não tenho acesso a bolsa e os meus pais conseguem suportar esse custo”, refere a estudante do 4.º ano de Ciências Farmacêuticas da Universidade de Lisboa, natural de Tavira.

Foto
Maria Livramento, estudante da FFUL Maria Abranches

Só para o quarto, em Lisboa, são 333 euros. Acrescem as despesas fixas, as propinas, a alimentação. Já não consegue gastar menos de “15 ou 20 euros” por semana no supermercado, e acaba por ter de fazer escolhas mais em conta: “Dantes comprava bacalhau ou outro peixe, mas agora é um bocadinho impensável. Tenho mais atenção ao que vou comprar. Os vegetais estão muito mais caros, mesmo as latas de atum, o arroz e a massa. Acabo por não ter tanta variedade na alimentação como gostava.”

Maria acredita que tem feito uma “boa gestão”. Não costuma ir a festas e, se for, dá preferência às que não têm entrada paga; se saiu uma vez ou gastou dinheiro num jantar de aniversário, não volta a fazê-lo no mesmo mês; dá preferência a cozinhar em casa e, se por algum motivo não conseguir, escolhe fazer refeições na cantina social, onde a alimentação é “saudável e acessível”.

Já Cheila Marques, do mesmo curso, deixou as refeições no bar ou na cantina, como fazia no primeiro ano, e agora traz sempre comida de casa. “Está tudo mais caro. Até a comida no bar. Mesmo que seja um lanche, sinto que tenho de me conter. Os meus pais estão a fazer mais esforço, se precisar de dez euros numa semana para alimentação, custa-me muito pedir”, diz.

É-lhe “completamente insuportável” pagar uma renda em Lisboa, por isso passa quatro horas por dia em viagens entre a faculdade e casa, numa aldeia em Torres Vedras, o que é “bastante cansativo” e tem implicações na sua “dinâmica pessoal”. Vale-lhe a bolsa, que paga as propinas — mas, mesmo assim, já ponderou “arranjar um trabalho”, apesar de considerar ser “complicado conciliar com o curso”.

Comer menos ou dispensar refeições

Preocupações sintomáticas, que vão chegando às associações estudantis. Um inquérito feito pela Federação Académica do Porto (FAP) a 1277 estudantes da Academia mostra que as principais medidas tomadas para fazer face à inflação estão relacionadas com a alimentação: 51% dos inquiridos dizem preparar as refeições em casa; 47% assumem reduzir os gastos em cada compra; 32% admitem reduzir a frequência de ida às compras e 27% referem estar a comprar produtos mais baratos, ainda que com menor qualidade nutricional.

O mesmo inquérito reporta ainda que, em média, as despesas de alojamento, transportes, propinas, alimentação, entre outros, 29% dos estudantes gastam mais de 500 euros todos os meses. 26% dizem gastar entre 350 e 500 euros, 24% entre 200 e 350 e apenas 21% menos de 200 euros. Por motivos financeiros, 24% admitiram "pensar ou já ter pensado" em desistir de estudar.

A Catarina Ruivo, da Federação Académica de Lisboa, chegam os mesmos problemas, ainda que de forma algo “informal”. Pelo que vai auscultando, afiança que as dificuldades são “transversais”: “Actualmente, um estudante deslocado gasta cerca de 30 euros por semana no supermercado, se mantiver as escolhas que fazia antes da inflação”, começa por explicar. “Perguntámos medidas que as pessoas têm adoptado para diminuir um pouco os custos e dizem-nos que fazem menos refeições ou compram menos de cada vez. O que nos faz questionar se estão a ter uma alimentação adequada.”

O recurso à cantina, acredita Catarina Ruivo, acaba por representar uma solução viável (“Algumas vezes por semana, porque todos os dias representa mais de dez euros”, ressalva). Na Cantina Velha, em Lisboa, o preço do prato social fixa-se nos 2,80 euros e inclui pão, sopa, prato principal, sobremesa (fruta, iogurte ou doce) e bebida (água, sumo ou chá).

Foto
Sofia Tavares trocou o curso em Lisboa pelo Porto por motivos financeiros Paulo Pimenta

Em Janeiro deste ano, verificou-se um aumento de 55,31% “na generalidade das cantinas afectas aos Serviços de Acção Social (SAS) da Universidade de Lisboa (UL)”. Se excluídos os anos de pandemia, onde o número de refeições servidas diminuiu, os dados da UL mostram que em Janeiro de 2019 (pré-pandemia) foram servidas 34.430 refeições nas cantinas sociais, e no período homólogo de 2023 foram servidas 52.992. A instituição afirma, no entanto, ser necessário “consolidar os dados por um período homólogo mínimo de três meses” para ter “uma ideia segura das causas do aumento”.

Este cenário não se replica, no entanto, na Universidade do Porto, Coimbra ou Minho. Na primeira, a procura ainda está em níveis “distantes dos registados no último ano pré-pandemia”: comparando os números de Janeiro e Fevereiro de 2019 e os do mesmo período de 2023, “há uma diminuição de 3410 refeições servidas este ano”.

Em Coimbra, foram servidas pouco mais de 354 mil refeições entre Setembro e Fevereiro do ano lectivo 2018/2019 e cerca de 320 mil no mesmo período deste ano lectivo. Ou seja, uma diminuição de cerca de 34 mil pratos servidos. A Universidade do Minho refere que “a actual conjuntura económica e o aumento dos preços dos alimentos, até ao momento, não se traduziu no aumento da procura das cantinas por parte dos estudantes”: “No início de 2023 servimos aproximadamente 1600 refeições diárias e, em período homólogo de 2019, servimos 1900, menos 300 refeições diárias.”

Mas à Refood têm chegado pedidos de ajuda de estudantes — que “não eram um beneficiário típico” do movimento de voluntariado que distribui excedentes alimentares de parceiros como restaurantes, supermercados ou pastelarias por pessoas que procuram ajuda. Nos últimos tempos, a organização tem visto que começam a surgir estudantes no grupo de beneficiários diários (aqueles que, normalmente, não têm acesso a cozinha e procuram, todos os dias, comida preparada e aquecida).

“Acredito que sempre tenha existido alguma dificuldade no seio dos estudantes, mas talvez houvesse mais vergonha. Neste momento existe mais carência”, afiança Raquel Gomes, da Refood Vila Real. “Temos sobretudo estudantes estrangeiros que vêm estudar para Vila Real, não são bolseiros, e que, chegados aqui, se deparam com mais dificuldades do que o que esperavam.” Não encontram trabalho, mas antes rendas altas. E, depois de pagas as propinas e o quarto, “não sobra dinheiro para a comida".

“Uma baguete não é um almoço

Quando Pedro Fialho, estudante do 3.º ano de Engenharia Física no Instituto Superior Técnico, entrou no curso, muitos alunos “iam almoçar e até jantar” à cantina social. Mas também era constante conversarem sobre a necessidade de reabilitação do espaço — que acabou por se concretizar.

As obras na cantina do Técnico (IST/Alameda) arrancaram em Junho de 2022 e, desde então, foi instalada uma solução provisória no edifício de Matemática, onde os alunos podem ter acesso ao prato social. Pedro Fialho assegura, contudo, que a cantina temporária “tem uma capacidade muito inferior” e que “não há tempo para estar na fila, que é de 30 a 40 minutos”.

No final do ano passado foi anunciado aos estudantes que também o bar e a cantina de Engenharia Civil iriam encerrar para obras: “Foi muito estranho, porque nunca se tinha falado nisso. Tudo esteve envolto numa grande nébula e acabamos por descobrir que esses estabelecimentos fariam parte de um contrato entre o Técnico e o Pingo Doce — que já existe à porta do nosso instituto”, atira.

O estudante, que pertence ao conselho pedagógico e ao movimento Resist — organizador de uma manifestação a propósito do problema —, garante que o fecho de mais uma cantina e um bar “piorou a situação”. A tenda instalada junto ao pavilhão de Matemática, com o intuito de aumentar o número de lugares, também não responde às necessidades dos estudantes, uma vez que “não resolve o problema de os trabalhadores da cantina não conseguirem servir toda a gente”, considera.

Foto
Maria Abranches
Foto
Tenda instalada para aumentar o número de lugares Maria Abranches

Sobre a situação, a direcção do Técnico refere que “não é a instituição responsável pela alimentação social”, mas que tem atenção à “criação de alternativas”, apontando que se mantiveram em funcionamento bares e pastelarias dentro do campus, além da cantina provisória e da tenda. Mais ainda, desde Janeiro de 2023, foram disponibilizados locais de entrega para comida vinda do exterior, ofertas take-away e de alimentação biológica, além da colocação de microondas no Pavilhão de Civil — medida que se deverá estender à tenda de suporte à cantina provisória.

Opções que, para Pedro Fialho, não são satisfatórias: “Com o aumento generalizado dos preços, existe uma necessidade maior do prato social.” Optar por uma refeição no bar ronda os seis euros — por isso, “normalmente, as pessoas comem só uma sopa e um salgado”, acabando por não fazer uma refeição completa. E “uma baguete não é um almoço...”, refere.

Sobre o tempo de espera na cantina provisória, o Instituto Superior Técnico diz lamentar, mas afirma não existir “outra solução temporária”: “A alternativa era não termos qualquer alternativa.” A direcção diz “compreender as necessidades”, mas afirma não dispor de “mais espaços adequados a restabelecer, no curto prazo, o serviço com as condições que existiam antes da reabilitação”. A perspectiva é que a reabilitação da cantina e do bar de Civil esteja concluída ainda este mês, e que a cantina social esteja a funcionar no arranque do próximo ano lectivo.

Foto
Fila para a cantina provisória Maria Abranches

Relativamente à instalação de um estabelecimento Pingo Doce, a direcção justifica que esta foi “a única empresa a dar resposta no concurso que esteve aberto e para o qual foram convidadas inúmeras empresas, incluindo a do concessionário que lá estava até Dezembro de 2022”.

Protestar para “baixar o muro”

Foi neste contexto de vulnerabilidade e dificuldades que, mais uma vez, os estudantes saíram à rua para assinalar o Dia Nacional do Estudante. “A manifestação acontece no seguimento de um compromisso histórico com a luta estudantil e as comemorações do 24 de Março, mas também num quadro de aumento do custo de vida, onde cada vez mais estudantes ficam de fora do ensino superior ou são obrigados a desistir”, aponta Mafalda Borges, presidente da Associação de Estudantes da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, que convocou os protestos.

Os estudantes reivindicam “mais acção social”: mais bolsas, mais alojamento, transporte, mais “apoios a nível de saúde mental”. Querem discutir as propinas, taxas e emolumentos, que “continuam a ser uma grande barreira” no acesso ao ensino superior. Querem mais “condições materiais e humanas nas instituições”.

Mafalda Borges lamenta as “situações preocupantes” que “fazem questionar se o propósito da educação no nosso país não é evoluir” e reitera que “ninguém deve ficar de fora por questões socioeconómicas”. “Se tornamos o ensino superior em algo cada vez mais elitista, que só forma alguns, para que serve?”

Sugerir correcção
Ler 46 comentários