A língua portuguesa colonizada...

Será que as universidades, assim como os ministérios da Cultura e da Educação, se preocupam em proteger a língua portuguesa? Não será crucial reflectir sobre o que tem sido (ou não...) feito?

De acordo com as definições de filólogos, considera-se que a linguagem é pura ou vernácula quando o seu léxico e construções sintácticas autorizadas são genuinamente nacionais pelos que bem falam ou escrevem, desde os grandes mestres até aos que praticam a chamada linguagem popular. De notar, a propósito, que a condição de “não ter estudos” não significa que não se saiba falar português expressivo e de boa qualidade.

Todas as línguas vivas, incluindo o português, não são um sistema fechado, pois sofrem mutações ao longo do tempo quanto à fonia, semântica e sintaxe, o que se pode explicar em parte pela importação de vocábulos doutras línguas.

Na actualidade, designadamente no âmbito da linguagem utilizada em diversas áreas do conhecimento, é notória a influência da língua inglesa, verificando-se que nos séculos XIX até meados do século XX, prevaleceu no nosso país a influência do francês. Como consequência de tal facto, os filólogos, considerando que a “pureza” da nossa língua estava a ser afectada, identificaram uma tipologia de alterações ou “vícios” contribuindo para desvirtuar a boa ou pura linguagem.

Nesta perspectiva, apontaram-se como principais e mais frequentemente utilizados os chamados estrangeirismos e os neologismos, admitindo como legítima a utilização no caso de não haver alternativa na nossa língua.

O estrangeirismo consiste no uso de palavras ou construções frásicas próprias das línguas estrangeiras (tomando o nome do país donde foi importado, por exemplo francesismo, anglicismo, etc.), pressupondo que aquelas se consideram desnecessárias, sem justificação, pelo facto de haver alternativa na nossa língua.

O neologismo consiste no uso de vocábulos criados de novo. Geralmente resulta da necessidade de criar palavras novas para designar conceitos e objectos novos, aporteguesando muitas vezes palavras doutras línguas. Alguns exemplos: cosmonauta< cosmos + nauta; telespectador < tele+ espectador; líder < leader; bicicleta < bicyclette; uísque < whisky, etc.).

Na minha qualidade de cidadão comum interessado na preservação da língua portuguesa, leitor atento de jornais, ouvinte das estações de rádio e espectador da televisão, é-me fácil verificar que existe uma utilização excessiva e crescente de estrangeirismos derivados da língua inglesa. Para documentar o facto (que igualmente é notório no Brasil, França e Itália), valerá a pena citar dois exemplos em contextos diversos, com a particularidade de ocorrência recente (2020-2021). Todos nós protagonizamos no dia-a-dia, designadamente na linguagem falada, situações que chegam a entrar no campo do ridículo pela profusão de estrangeirismos utilizados, em número igual ou superior ao das palavras da nossa língua!

A primeira ocorrência coincide com o início da pandemia e com o emprego oficial, sob os auspícios da tutela, adoptando a designação de task force. Trata-se, pois, de um estrangeirismo com a particularidade de ter passado a fazer parte do léxico do Diário da República, o que significa “adopção legal” duma terminologia que tem alternativa na nossa língua (por exemplo, grupo de trabalho ou grupo de pressão).

A segunda ocorrência, remontando a 2021, relaciona-se com o surgimento de uma nova estação televisiva de origem americana, com logótipo multinacional, de cariz noticioso, operando com a colaboração de um grande número de jornalistas falando português e de uma plêiade de comentadores residentes e convidados para a realização de múltiplos debates de curta duração e a “alta velocidade”. Essencialmente: um canal televisivo, dotado de um dinamismo a que não estávamos habituados, “espevitando” a concorrência, a qual que aproveitou o ritmo e procedeu a certos retoques na programação em prol da modernidade.

Concretamente, a particularidade da ocorrência linguística no contexto do referido canal televisivo pode assim sintetizar-se: emissão de programas nacionais em português (portanto, locutores/jornalistas falando o português), e adopção do inglês para anúncio explícito de três rubricas lidas em inglês, respectivamente: breaking news, prime-time, e crossfire. Aqui, em mais uma vez, surge a pergunta: não haveria alternativa em português para caracterizar o programa ou rubrica a anunciar?

Estas duas tipologias de denúncias são representativas de um espectro muito alargado de estrangeirismos com que nos deparamos no dia-a-dia nos mais diversos contextos: desde a linguagem corrente falada ou escrita, à linguagem biomédica, aos anúncios de eventos científicos, às designações dadas a empresas e a escolas universitárias. Trata-se, pois, de um assunto que é polémico e de difícil resolução, pelo menos na versão de linguagem escrita.

Perante o panorama traçado, é perfeitamente explicável que os especialistas em linguística, pugnando pelo conceito de norma e de correcção idiomática, considerem que a oficialização linguística indiscriminada de estrangeirismos e doutros vícios de linguagem corresponde a uma forma de colonização cultural, tanto mais grave quanto não vem preencher eventuais vazios, dado que a nossa língua é das mais ricas e complexas.

E será que as universidades, assim como os ministérios da Cultura e da Educação se preocupam em proteger condignamente a língua portuguesa? Será que abordagem do panorama descrito é uma minudência? Não será crucial reflectir sobre o que tem sido (ou não...) feito?

Cumprindo um dever ético, declaro que a autoria deste escrito não pertence a perito em linguística, mas a médico que se interessa pela preservação da língua portuguesa e teve bons professores de português durante a sua juventude. De facto, pode parecer estranho.

Para terminar, cito um professor de Medicina da Universidade do Porto, que também praticou pintura, escultura e gravura - Abel Salazar [1899-1946] - e que deixou para a história uma frase célebre: “O médico que só sabe de medicina, nem de medicina sabe!”

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