Benjamin B. Ferencz (1920-2023), o procurador de Nuremberga que espiou o inferno

Com apenas 27 anos e quase sem experiência em tribunal, Ferencz condenou 22 nazis da Einsatzgruppen, tendo quatro sido executados.

Foto
Benjamin B. Ferencz morreu na passada sexta-feira aos 103 anos EPA/ARMINA WEIGEL

Fecharam-se, para sempre, uns dos olhos que viram as maiores barbaridades humanas do século passado. Benjamin B. Ferencz, último procurador vivo dos julgamentos de Nuremberga, morreu, durante o sono, esta sexta-feira, aos 103 anos, na Flórida (EUA).

Ainda hoje, quando fecho os olhos, testemunho uma visão mortal que não conseguirei nunca esquecer: os crematórios com o fogo da carne queimada, os montes de cadáveres macilentos empilhados como lenha à espera de serem queimados. Espiei o inferno”, escreveu no seu livro Planethood: The Key to Your Future, publicado em 1988, sobre as suas visitas a campos de concentração nazis enquanto militar americano.

Benjamin B. Ferencz não testemunhou apenas horrores humanos: teve de os investigar, procurar, digerir — para poder condená-los e, assim, nas suas palavras, estabelecer o “direito do homem a viver em paz e com dignidade, independentemente da sua raça ou credo”.

“Se a mãe estiver a segurar o bebé contra o peito, não dispare contra ela. Dispare contra o bebé, porque a bala perfurará ambos e assim economizará munições”, recordou uma vez, ao The Guardian, sobre as ordens que um seu réu deu aos tropas no contexto da Einsatzgruppen — uma unidade nazi de extermínio que andava por vilas e cidades da Europa Oriental, auxiliada pelas respectivas polícias locais, a fuzilar líderes políticos, intelectuais, judeus, ciganos, nobres, clérigos e quaisquer outros “indesejáveis”.

Às mãos da Einsatzgruppen terão morrido um milhão de pessoas, tendo estes criminosos de guerra sido julgados apenas por insistência de Ferencz, em 1947. À época, nos auspícios da Guerra Fria, uns EUA pressionados para formar uma aliança com a Alemanha Ocidental queriam que os procedimentos judiciais relativamente aos alemães fossem concluídos. A equipa judicial, sobrecarregada, não parecia preparada para conseguir assumir um novo caso — todavia, Ferencz suplicou para que o caso da Einsatzgruppen não fosse ignorado.

Não foi: com apenas 27 anos e quase sem experiência em tribunal, Ferencz condenou 22 nazis, tendo quatro sido executados. Poderia ter condenado milhares, afirma, mas viu-se limitado pelo número de assentos do tribunal. A escolha foi tida com base na posição militar e educação — liam Goethe e ouviam Wagner, conta — dos réus.

Até hoje, este é considerado o maior julgamento por homicídio na história — crimes que poderiam ter ficado impunes, não fosse a insistência de Ferencz.

A importância das leis

Tinha apenas um metro e meio e conta-se que era muito difícil vê-lo nos tribunais apinhados de Nuremberga. Ferencz (que se pronuncia fer-RENZ, esclarece o New York Times) nasceu numa casa de palha na Transilvânia, Roménia, em 1920. Os pais, analfabetos, emigraram para os EUA. Ferencz destacou-se nos estudos, o que mais tarde lhe valeu uma bolsa para estudar em Harvard. Era fluente em francês, espanhol, alemão, húngaro e iídiche.

Terminado o curso de Direito, em 1943 — ou seja, já em plena Segunda Guerra Mundial —, alista-se no exército. Esteve presente na invasão da Normandia, em 1944, e lutou em França e na Alemanha. Em 1945, devido aos seus estudos, viria a ser destacado para investigar crimes de guerra em campos de concentração recém libertados. O que viu, e que acima foi descrito, ficou para sempre na sua memória. Em 1946 casa-se com Gertrude Fried, em Nova Iorque, de quem teve quatro filhos.

No fim dos anos 60, quando a participação americana na guerra do Vietname se acentuou, Ferencz retirou-se da advocacia para promover a paz e a criação de um tribunal criminal internacional para julgar crimes de guerra, parcialmente concretizado com a criação do Tribunal Penal Internacional em Haia.

“Nuremberga ensinou-me que a criação de um mundo de tolerância e compaixão seria uma tarefa árdua e longa (…). Se não nos dedicarmos ao desenvolvimento de leis mundiais eficazes, a mesma mentalidade cruel que tornou possível o Holocausto poderá um dia destruir toda a raça humana”, afirmava no seu site.

Sugerir correcção
Comentar