Elogio da Justiça

No dia 19 de janeiro de 2023, o Supremo Tribunal de Justiça de Portugal revogou a decisão do “paternalismo redutor”.

No livro A Janela do Cardeal (Planeta, 2010), narrando a história de uma grande injustiça na História de Portugal, coloco na boca do protagonista as imortais palavras de Erasmo de Roterdão, no seu livro de 1511, Elogio da Loucura: “Se os tumultos inúmeros dos mortais pudessem ser observados da Lua, julgaríeis ver milhares de moscas e mosquitos envolvidos em rixas, guerras, insídias, rapinas, ludíbrios, lascívias, nascimentos, quedas e mortes. Não acreditaríeis nas perturbações e tragédias causadas por um animalzinho destinado a morrer”.

Entretanto, já fomos à Lua e criámos um Sistema Nacional de Justiça. Este, destinado a afirmar o princípio basilar da atual Constituição da República Portuguesa: “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 1.º).

No Sistema Nacional de Justiça trabalham centenas de milhares de pessoas, todos os dias, com diversas funções. Na sua larga maioria com empenho em cumprir tão difícil quanto gratificante desiderato. Tantas vezes incumprido. A maior parte das vezes atingido.

Com a devida vénia aos autores citados e à relatora, a juiz conselheira Fátima Gomes, transcrevo de um histórico recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, tirado por unanimidade, por se tratar de uma fundamentação justa e que faz de nós uma sociedade melhor:

«A Lei n.º 49/2018, de 14-08, veio revogar o regime das interdições e inabilitações e, em sua substituição, criou o Regime Jurídico do Maior Acompanhado, podendo ler-se na Proposta de Lei n.º 110/XIII que deu origem àquele diploma que os fundamentos finais da alteração das denominadas incapacidades dos maiores são, em síntese, os seguintes: “a primazia da autonomia da pessoa, cuja vontade deve ser respeitada e aproveitada até ao limite do possível; a subsidiariedade de quaisquer limitações judiciais à sua capacidade, só admissíveis quando o problema não possa ser ultrapassado com recurso aos deveres de proteção e de acompanhamento comuns, próprios de qualquer situação familiar; a flexibilização da interdição/inabilitação, dentro da ideia de singularidade da situação; a manutenção de um controlo jurisdicional eficaz sobre qualquer constrangimento imposto ao visado; o primado dos seus interesses pessoais e patrimoniais; a agilização dos procedimentos, no respeito pelos pontos anteriores; a intervenção do Ministério Público em defesa e, quando necessário, em representação do visado”».

«A adoção deste novo regime foi já qualificada como a “a maior reforma na Parte Geral do Código Civil após a sua publicação em 25 de Novembro de 1966” (António Pinto Monteiro), uma verdadeira “revolução coperniciana” (Mafalda Miranda Barbosa), desencadeada pela adesão de Portugal à Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adotada em Nova Iorque em 30 de março de 2007 (e ao seu Protocolo Adicional). No novo paradigma, a pessoa com deficiência é vista como sujeito de direitos, rejeitando-se situações genéricas de incapacidade de maiores de dezoito anos. Como sintetiza Pinto Monteiro, “Proteger sem incapacitar” constitui, hoje, a palavra de ordem, de acordo com os princípios perfilhados pela referida Convenção da ONU e em conformidade com a transição do modelo de substituição para o modelo de acompanhamento ou de apoio na tomada de decisão”».

«Na convenção dá-se primazia à autonomia da pessoa acompanhada, cuja vontade deve ser respeitada e aproveitada até ao limite do possível; … no regime do maior acompanhado o espírito das soluções normativas é da proteção dos interesses do beneficiário; … primazia à autonomia da pessoa acompanhada implica a total liberdade desta escolher tanto a pessoa que deva ser o seu acompanhante, como as pessoas que tenham por função a fiscalização deste último, independentemente dos motivos ou intenções do beneficiário / acompanhado, exigindo-se apenas que a vontade do beneficiário seja livre e esclarecida; … a solução propugnada no acórdão recorrido é de um paternalismo redutor da pessoa da beneficiária, impondo uma proteção não querida por aquela e não imposta pela lei, nem adequada ao espírito do sistema.»

E, assim, no dia 19 de janeiro de 2023, o Supremo Tribunal de Justiça de Portugal revogou a decisão do “paternalismo redutor”. Um elogiável dia para os milhares de pessoas que integram diariamente essa aparente loucura que parece ser o Sistema Nacional de Justiça. Que vem a ser a última fronteira antes da guerra civil.

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