O Coração Ainda Bate. Um caminho mudo

Inês Meneses escreve sobre o que muitas vezes adia a amizade.

Acontece demasiadas vezes perguntar a alguém: “Mas por que razão deixaste de falar com essa pessoa?” A resposta anda, invariavelmente, à volta destas palavras: “Não sei bem dizer.” É isso que acontece nas nossas vidas. Fomo-nos afastando. As palavras sumiram-se, faltaram quando queríamos ou devíamos ou podíamos até ter dito algo mais. A pequena dor que nunca saiu dali, que se instalou e, mesmo de forma invisível, fez por deixar rasto. A dor pequenina que mina uma amizade. Uma inveja que não se explica, uma insatisfação que radica numa frustração maior: “Por que não fomos nós?”

A inveja é uma palavra tão feia como o sentimento que a transporta, mesmo que todos a saibamos de cor. Sabem os ricos e os pobres, os conhecidos e os anónimos, os reconhecidos e aqueles cujo talento ficará para aceitar depois. Depois, na hora da nossa morte.

A amizade é uma casa onde a inveja nunca devia entrar, mas entra sem explicação, sem permissão, sem consciência de que se está a esgueirar por aquela frincha que não acautelámos a tempo, como quando o Inverno chega e a janela o deixa entrar.

“Não sei bem dizer porque deixámos de nos falar.” Mas sabemos. Foi uma pontada ali no coração que parecia não indiciar nada, e até muito mais do que isso: foi o culminar de várias e somadas dores, de uma dádiva unilateral, de queixas que se mitigavam para não parecermos as vítimas do costume.

A minha mãe ensinou-me um daqueles provérbios que repito com gosto, por perceber que nele se explica a vida: “Nunca o invejoso medrou, nem quem dele perto morou.” A inveja é tramada se deixarmos que avance, porque mina o terreno onde cresciam férteis os nossos sonhos. Passamos a ser parcimoniosos na forma como partilhamos as nossas alegrias. Só os tolos podem querer a felicidade dos outros para eles, quando não percebem que, muitas vezes, já a têm nas mãos. Não é estranho que a felicidade dos outros se afigure sempre mais apetecível? Porquê?

Então, muitas vezes, quando dissemos que não sabíamos muito bem porque nos separámos de amigos que o foram antes, não queríamos também assumir que eles falharam, que nos doeu, que, no limite, fomos coniventes com essa falha. Quando percebemos que um amigo se deixa enredar por essa teia da inveja, temos de o confrontar com isso. Temos de querer saber o que não o deixa feliz, em vez de saudar as nossas conquistas. A inveja insinua-se de uma forma tão banal, que nos sentimos constrangidos em abordá-la, temendo que a nossa queixa seja reenviada ao remetente: nós, portanto.

Por isso atiramos só com perguntas para o ar sem nos confrontarmos sequer com as respostas que poderíamos pedir. “Não tenho coragem de perguntar.” “Se calhar fui eu que não percebi bem.” “Pode ser só impressão minha.” As nossas tentativas em desculpar o outro vão-se multiplicar na tentativa de não fazermos ferida, sobretudo quando o outro tem um ascendente sobre nós. Por falta de coragem ou de vontade de seguir em frente sem levar muitos pontos, vamos então avançar mudos, com a tal dor fina, aguda, que nos perpassa mais do que a garganta. A dor que fica alojada no coração. É aí que mora a perda dos que amamos. E perdem-se pelo caminho, e por razão nenhuma, os amigos: por uma insatisfação ou uma frustração a que não podemos acudir. Chamam-lhe inveja. Às vezes é uma tristeza que vem da forma como se escolheu viver.


Siga o podcast O Coração Ainda Bate no Spotify, Apple Podcasts, Google Podcasts ou outras aplicações para podcast.

Conheça os podcasts da Rede PÚBLICO em publico.pt/podcasts. Tem uma ideia ou sugestão? Envie um e-mail para podcasts@publico.pt.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários