Mirandês em risco aguarda ratificação da carta das línguas minoritárias

A Carta Europeia das Línguas Regionais e Minoritárias “elenca uma série de premissas com que os Estados-membros” se comprometem para “a salvaguarda e defesa das várias línguas minoritárias”.

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Na aldeia de Picote, o nome das ruas tem afixação em mirandês e português Bruno Simoes Castanheira

A Associação de Língua e Cultura Mirandesa (ALCM) reiterou este sábado a necessidade urgente de o Estado fazer a rectificação da Carta Europeia das Línguas Regionais e Minoritárias do Conselho da Europa, para assegurar o futuro da língua mirandesa.

"Portugal assinou a Carta Europeia das Línguas Regionais e Minoritárias do Conselho da Europa, mas ainda não a ratificou. O processo estará a andar mas não temos informação se estará a andar com a velocidade desejada", explicou à agência Lusa o presidente da ALCM, Alfredo Cameirão.

O Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) anunciou em 7 de Setembro de 2021 que Portugal assinara a Carta Europeia de Línguas Regionais e Minoritárias do Conselho da Europa, que visa proteger e promover as línguas regionais e minoritárias históricas do continente. De acordo uma nota do MNE, emitida nesta data, a língua mirandesa esteve na base da assinatura.

De acordo com Alfredo Cameirão, a Carta Europeia das Línguas Regionais e Minoritárias do Conselho da Europa é um documento que já vem desde 1992, que "elenca uma série de premissas com que os Estados-membros" desta organização se comprometem para "a salvaguarda e defesa das várias línguas minoritárias que eventualmente cada país tenha no seu território". "No caso de Portugal, foi dito, no acto da assinatura, que o motivo deste acto foi a defesa da língua mirandesa, a língua minoritária existente no nosso país", vincou Alfredo Cameirão.

Para o responsável, a rectificação da Carta é fundamental e exemplifica algumas das premissas, como o caso de o Estado português se comprometer "a oferecer a tradução de português para mirandês nos tribunais, caso o cidadão assim o entenda".

"Este documento estabelece ainda que haja uma avaliação periódica do cumprimento das alíneas contidas nesta carta para se fazer um ponto de situação da sua implementação, por peritos internacionais", disse Alfredo Cameirão.

Para o presidente da ALCM, a ratificação da Carta Europeia das Línguas Regionais e Minoritárias do Conselho da Europa seria o reassumir da defesa da língua mirandesa por parte do poder central.

"Vamos imaginar um curso técnico profissional de turismo, por exemplo, ministrado na Terra de Miranda. Para nós faz todo o sentido que uma das línguas utilizadas na formação dos alunos seja o mirandês, mas como língua curricular e não operacional", destacou.

Outra das valias com a rectificação da Carta poderá incidir em pessoas que falem e escrevam o mirandês correctamente na candidatura a um posto de trabalho na Câmara Municipal de Miranda Douro ou outro serviço público local.

Portugal é um dos poucos países europeus que ainda não ratificou esta Carta Europeia. "Quando se fala do mirandês em Lisboa é quase um não assunto, porque tem pouco peso político e votos", frisou Alfredo Cameirão

Um estudo da Universidade de Vigo (UVigo), Espanha, aponta para a ratificação da Carta Europeia das Línguas Minoritárias e para a necessidade de uma nova Lei do Mirandês, actualizada de acordo com acções e medidas planificadas e orçamentadas em educação, justiça, administração local e regional, serviços públicos, meios de comunicação, actividades e equipamentos sociais, economia e intercâmbios transfronteiriços, como ponto de partida para que a língua mirandesa ganhe de novo vitalidade.

Segundo o município de Miranda do Douro e os representantes da ACLM, foram avaliados os 39 princípios mínimos da Carta Europeia de Línguas Regionais e Minoritárias do Conselho da Europa, com que Portugal tem de se comprometer.

Para o presidente do Agrupamento de Escolas de Miranda Douro, António Santos, o futuro da língua mirandesa passará sempre pelo seu ensino. "É preciso um planalto de choque para que o mirandês sobreviva nas próximas décadas", vincou.

Apesar do reconhecimento oficial através de lei, em 1999, o mirandês continua "a não ter um enquadramento institucional adequado", apontam os linguistas que se dedicam ao estudo desta língua.

"É fixe" aprender mirandês

Uma geração mais nova, entre os habitantes de Miranda do Douro, mostra esperança na sobrevivência da língua mirandesa e apela à salvaguarda deste idioma que pode estar perdido dentro de 20 anos, segundo o acima citado estudo da UVigo.

A reportagem da agência Lusa neste concelho do distrito de Bragança encontrou "gente jovem que se mostra apaixonada pela língua e pela cultura mirandesas", que se sente "mais livre" por falar mirandês e que diz que "é fixe" aprendê-lo, apesar de ser a sua faixa etária a mais afectada pelos factores que põem esta língua em risco.

O mirandês, porém, está numa situação "muito crítica", devido ao abandono desta forma de falar por parte de entidades públicas e privadas, segundo as conclusões do estudo da UVigo revelado pela Lusa no passado mês de Fevereiro.

Lançado no terreno em 2020, o estudo estimou em cerca de 3.500 o número de pessoas que conhecem a língua, com cerca de 1.500 a usá-la regularmente, identificando uma rotura com este idioma, sobretudo nas gerações mais novas, através de uma "forte portugalização linguística", assente em particular na profusão dos meios de comunicação nas últimas décadas, e na identificação do mirandês com a ruralidade e a pobreza locais.

O empresário Henrique Granjo, 30 anos, dirigente da Associação Recreativa da Juventude Mirandesa, disse à Lusa que o estudo recentemente apresentado "é real" e não se pode negar "esta ameaça", mas ainda se vai a tempo de contrariar esta tendência que paira sobre o mirandês.

"Há gente jovem que se mostra apaixonada pela língua e cultura mirandesas. Há pessoas que regressam às origens e ainda vamos contrariar as tendências reveladas neste estudo. Para travar toda esta realidade será importante um forte investimento das entidades públicas na salvaguarda do idioma", vincou o empresário e dirigente associativo.

Henrique Granjo refere ainda que, se houver investimento na salvaguarda da língua mirandesa nas próximas duas décadas, a situação poderá estar acautelada: "É importante investir em sectores como a educação e cultura, que são os patamares para a preservação do mirandês, aos quais acrescem medidas concretas para dinamização do interior para assim contornar as indicações do estudo divulgado".

Leonor Gomes e Leonor Martins são duas jovens estudantes de 10.º ano de escolaridade que mostram orgulho na sua cultura e na sua língua, por ser uma herança cultural dos seus antepassados, e sentem vaidade em falar mirandês, apesar de, por vezes, esta forma de comunicar não ser bem entendida por outros grupos de jovens de outras regiões do país.

"Ao falar mirandês sinto-me mais livre e mais rural. Sinto-me como se estivesse na pele dos meus avós e na tranquilidade de uma aldeia mirandesa", confessou Leonor Gomes.

Leonor Martins, por seu lado, afiança que está habituada a que as pessoas com mais idade falem sempre em mirandês e por vezes "é fixe" também aprender a língua. As duas jovens não têm dúvidas na sua perpetuação do mirandês e justificam que se trata de uma tradição que tem raízes num passado que faz parte de uma identidade cultural única.

"São as nossas origens, e não queremos perdê-las. É algo que nasceu connosco e faz parte da história dos nossos antepassados e da nossa terra, e temos receio que a língua mirandesa desapareça, porque cada vez mais o idioma não é falado no dia-a-dia", argumentam as jovens estudantes, que também aprendem mirandês na escola. Apesar de se identificarem com a língua mirandesa, o mais natural para estas duas jovens "é falar português".

No reverso da medalha, estão os mais velhos e o abandono das aldeias. Se para os jovens com quem a Lusa falou, o mirandês ainda poderá ter salvação, para os mais velhos, embora a língua ainda faça parte do seu quotidiano, a condenação parece impor-se, com o desaparecimento de pessoas das aldeias raianas.

O despovoamento de localidades do concelho de Miranda do Douro como São Martinho, Cicouro, Constantim, Aldeia Nova e Ifanes, circunscreve o mirandês ao ambiente familiar e a conversas de circunstância entre amigos. E é essa a perspectiva dos seus habitantes.

É por estas paragens, na parte mais interior de Portugal, que o mirandês ainda vai mantendo alguma expressão, como reconhece Duarte Cristal, de 63 anos, residente em São Martinho, que sempre foi dizendo como esta língua faz parte do seu dia-a-dia, falada em ambiente familiar.

Para este habitante da raia mirandesa, um dos principais inimigos do mirandês é a baixa taxa de natalidade: "Se não houver novas gerações de falantes, a língua mirandesa poderá estar mesmo condenada" e não ter continuidade, "por causa do abandono das aldeias por pessoas que procuram a vida noutras paragens".

Domingos Torrão, um octogenário de Cicouro, fez questão de responder às questões da Lusa em mirandês. "Há cerca de duas décadas, o mirandês era bem aceite. Falávamos muito o mirandês aqui na raia. Agora, cada vez somos menos, e a este ritmo, e apesar de ser a segunda língua oficial em Portugal, o risco é iminente", frisou este falante da língua mirandesa.

Para a UVigo, a manter-se a situação, "a este ritmo é possível que o mirandês morra antes [dos próximos] 30 anos", conservando-se apenas como "um latim litúrgico para celebrações", sem ser "língua para viver a diário", como se lê no estudo que ainda não tem data para apresentação oficial.

A língua mirandesa é uma língua oficial de Portugal desde 29 de Janeiro de 1999, data em que foi publicada em Diário da República a lei que reconheceu oficialmente os direitos linguísticos da comunidade mirandesa.

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