Diogo Lopes, um enólogo contra 300 copos num só dia

Todos os anos, em Março, Diogo Lopes espalha numa sala as amostras do parque de 300 barricas da Adegamãe. E nós fomos, literalmente, meter o nariz na colheita de 2021.

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O enólogo Diogo Lopes e as amostras das suas 300 barricas Rui Gaudêncio

Dispersos por cinco mesas estão 300 copos com vinhos tintos de seis castas e provenientes de duas quintas da região de Lisboa (Touriga Nacional, Touriga Franca, Castelão, Pinot Noir, Cabernet Sauvignon e Petit Verdot). Cada casta — já se sabe — dá um perfil de vinho próprio, que se sente de imediato na prova quando termina a fermentação. Mas como nesta fase os vinhos estão muito crus, têm de ir para a barrica para se tornarem, digamos assim, civilizados. E é a partir daqui que o vinho de uma casta, fermentado da mesma forma e colocado num conjunto de barricas de 225 litros, vai iniciar um caminho identitário próprio —​ por causa do tal trabalho da madeira.

Como acontece em todo o lado, na Adegamãe (Ventosa, Torres Vedras) as barricas são oriundas de variadas tanoarias, têm madeiras diferenciadas e provenientes de florestas de diferentes latitudes e resultam de processos de construção muito próprios (mais ou menos tosta no interior, madeiras de um só tipo de árvore ou misturas de árvores e por aí fora). Em tese, os enólogos sabem que a barrica da tanoaria A dá um determinado perfil de vinho e a barrica da tanoaria B dá outro estilo de vinho.

Mas também sabem que, por mais uniforme que seja o processo de construção de barricas na tanoaria, se colocarem o mesmo vinho base em dez barricas dessa mesma tanoaria vão, a meio ou no final do processo de estágio, sentir diferenças nos vinhos. E se esse mesmo vinho base for repartido por barricas de tanoarias diferentes e anos de uso diferentes, maiores serão as diferenças na altura de se tomar a decisão de engarrafar o vinho. É por tudo isso que se criou o conceito de prova de barricas, que, consoante a dimensão da adega, pode ser uma bela dor de cabeça para o enólogo. Imagine o leitor o que é cheirar e provar com atenção, num só dia, 300 amostras de vinho.

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Provas de lotes de vinhos das barricas da Adegamãe Rui Gaudencio

E tem que ser com muita atenção porque, como nos diz Diogo Lopes —​ autor dos vinhos da Adegamãe — “o que uma determinada barrica dá num ano não é idêntico ao que vai dar no ano seguinte. Como a barrica vai tendo diferentes comportamentos com a passagem do tempo e como os vinhos são diferentes de colheita para colheita, o resultado final é incerto. Em todas as colheitas encontro vinhos de um mesmo lote de barricas uniformes e da mesma tanoaria que ora estão muito bons, bons ou mais ou menos. A madeira de uma árvore não é toda ela uniforme da base até ao topo. Por mais ciência que haja nas tanoarias — na escolha das florestas ou nos processos de construção —, há sempre factores aleatórios que entram no processo. Madeira não é inox.”

Ao longo do ano o enólogo avalia regularmente os vinhos das barricas, mas uma prova desta natureza prova de todas as barricas só ocorre uma vez por ano na Adegamãe e tem, grosso modo, três objectivos: a) perceber e/ou confirmar o perfil do ano (neste caso a colheita de 2021); b) separar de imediato barricas que tenham vinhos desequilibrados ou mesmo vinhos com defeitos (fenóis voláteis, que vulgarmente associamos a suor de cavalo, por exemplo) e, c) seleccionar, por cada casta, as barricas ou grupos de barricas que vão dar origem às diferentes marcas da casa. E é partir daqui que se vê a arte e a segurança do enólogo, tanto mais que estamos quase sempre a falar de vinhos de lote e não de vinhos varietais.

Peguemos, por exemplo, no topo de gama da empresa o Terroir. Este vinho, que vai na quarta edição para brancos e terceira para tintos, não tem uma fórmula de base com castas definidas. Resulta de um lote das melhores barricas que o enólogo encontra nesta prova de 300 barricas, caso entenda que tem material para sustentar o perfil premium e exigente do Terroir.

Se entender que sim, selecciona as barricas de um conjunto de castas e vai, no laboratório, testar qual ou quais serão as castas base e quais serão aquelas que servirão de sal e pimenta para o conjunto final. Na prática, mete em várias provetas diferentes percentagens de castas, "casa" esse conjunto, espera um pouco, cheira e prova.

Encontrado o lote perfeito, Diogo Lopes juntará as mesmas percentagens de cada casta, mas agora numa cuba de inox. Homogeneizado num tempo o mais curto possível, o vinho é engarrafado e estagiado o tempo que a casa determina para esta referência (cinco ou seis anos). O modus operandi do Terroir é o mesmo para os restantes vinhos de lote da marca Adegamãe.

Acompanhar uma prova destas é um desafio didáctico e uma trabalheira dos diabos para o nariz e para a boca. Sentiu-se a colheita de 2021 com um carácter vegetal presente em quase todas castas, encantou-nos a finura e a fruta muito precisa das amostras de Castelão, regalámo-nos com o carácter mineral e salino dos Pinot Noir e reforçámos a ideia de que um toque de Cabernet Sauvignon num lote faz sempre pequenas maravilhas.

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O enólogo Diogo Lopes Rui Gaudencio

Quanto às Tourigas, nada a assinalar e, perante a Petit Verdot, a mesma ideia: ao fim de dez anos é capaz de dar um vinho interessante.

Não fizemos sugestões para a feitura de lotes coitado do Diogo Lopes, que ainda por cima é enólogo do ano para a revista Grandes Escolhas , mas, com copos para cima e copos para baixo, tentamos, mentalmente, separar os vinhos muito bons dos vinhos bons.

E isso tem que se lhe diga. Assinalar os vinhos desinteressantes ou defeituosos é canja, mas tentar imaginar que caminho vai fazer o vinho da barrica 83, 175, ou 215, isso já é outra loiça. Ainda bem que estamos aqui só para avaliar resultados. É mais fácil e tem menos riscos. Muito menos.

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