“Inteligência artificial pode ser um bom assistente judicial do juiz”

Magistrado que coordenou grupo de trabalho sobre a justiça digital admitiu no congresso dos juízes julgamentos virtuais mas defendeu que não faz sentido julgar um homicídio à distância.

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Os juízes estão reunidos em congresso na Madeira LUSA/HOMEM DE GOUVEIA

Os instrumentos de inteligência artificial podem ser muito bons assistentes judiciais dos juízes, para tarefas como compilar as contestações dos arguidos, pesquisar legislação ou jurisprudência, mas nunca deverão decidir processos judiciais. Foi esta uma das mensagens deixada esta sexta-feira pelo juiz José Joaquim Martins, assessor no Tribunal Constitucional (TC) e coordenador de um grupo de trabalho que reflectiu ao longo de mais de um ano sobre a justiça digital, durante uma apresentação no XII Congresso dos Juízes Portugueses, na Madeira.

O magistrado lembrou aos colegas que a tecnologia em si não é má e tem um potencial grande para melhorar a Justiça, mas admitiu que existem riscos se for usada de uma forma desadequada.

O magistrado defendeu que, neste contexto, é preciso definir os limites do "Estado de Direito Digital" e disse acreditar que, por causa da evolução tecnológica, há profissões jurídicas que vão desaparecer e outras que vão ser adaptadas, "Os grandes escritórios de advogados já se aperceberam disso, mas o mesmo não acontece na magistratura", afirmou José Joaquim Martins.

O juiz admitiu que se venham a realizar julgamentos virtuais, mas defendeu que tal só deve poder acontecer em casos cíveis de pouco valor. "É preciso soluções diferenciadas, ajustadas à própria natureza do processo. Não faz sentido fazer um julgamento de um homicídio à distância", considerou.

O assessor do TC lembrou que a tecnologia não está acessível a todos e falou da "exclusão digital", sublinhando que há partes do país, como o interior da Madeira, onde, muitas vezes, não existe acesso à Internet. Por outro lado, lembrou que nem todos têm acesso sequer a um telemóvel. "Os infoexcluídos não podem tornar-se excluídos do direito", sustentou, defendendo que entidades como as juntas de freguesia têm que ter ferramentas e pessoas disponíveis para ajudar quem não possui literacia digital.

Relativamente aos juízes, afirmou que sendo obrigados a usar ferramentas digitais é importante que as saibam usar de forma a não ficarem dependentes de terceiros. "É fundamental haver formação individual e contínua para os juízes nesta área", defendeu.

José Joaquim Martins voltou a insistir numa mudança por que os juízes lutam há algum tempo: a gestão directa dos sistemas informáticos da Justiça, que passariam a ser controlados pelos conselhos superiores dos magistrados e não pelo Ministério da Justiça.

Os desafios e os riscos que a tecnologia traz aos tribunais foi um tema abordado esta quinta-feira na sessão de abertura do congresso tanto pela presidente do Supremo Tribunal Administrativo, Dulce Neto, como pelo presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, Manuel Ramos Soares.

Dulce Neto pediu aos juízes para debaterem os perigos da aplicação da tecnologia na Justiça e para garantirem uma "adequada articulação entre tecnologia, direitos humanos e direitos fundamentais, certificando que as soluções digitais adoptadas são seguras e neutras e geram actos digitais compreensíveis, justos e não discriminatórios".

Manuel Ramos Soares também considerou que está a bater à porta dos tribunais "o invencível desafio da inteligência artificial, com riscos sérios de descaracterização e desumanização da justiça". E acrescentou: "Sujeito à pressão dos números, da rapidez de resposta e da produtividade estatística, o exercício do poder judicial está cada vez mais funcionalizado.

O presidente da ASJP sublinhou que "o afastamento físico do juiz do tribunal, permitido pelo acesso electrónico ao processo e incentivado pelas vantagens da eficiência, se não for rapidamente contido em limites razoáveis, vai aniquilar a função simbólica clássica da justiça, desumanizar o processo de análise e decisão, aumentar a probabilidade do erro".

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