O dia a seguir à greve dos médicos

Durante a manifestação em Lisboa lembrei-me da última vez em que estive na Avenida João Crisóstomo. Foi em 2012. O que mudou, entretanto? Pouco... Muito pouco!

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Lutávamos contra as constantes dificuldades e injustiças remuneratórias que se colocam aos médicos, obrigando-os a serem sensíveis a apelos privados Tiago Lopes

Cheguei à minha Unidade de Saúde Familiar às 8h da manhã, como habitualmente. Foi um dia intenso porque tive de recuperar o tempo perdido pela minha ausência de dois dias. Os doentes, as doenças e a prevenção não podem esperar. Uma falta converte-se inevitavelmente em sobrecarga de trabalho nos dias seguintes. Eu sei que é assim! Este sentimento de missão que ainda nos caracteriza e, por vezes, nos leva ao limite não nos permite falhar com os nossos doentes, com os vulneráveis, que não têm culpa de um sistema político que teima em não reconhecer e em desvalorizar quem desempenha esta função, mesmo após o período difícil e exaustivo que uma pandemia nos fez viver.

Se entendo esta evidência de necessidade de cuidados, entendo menos a persistência de quem nos governa em manter as burocracias, as baixas médicas de três dias, a renovação de receitas crónicas, os atestados e as declarações para ir à escola (ou para não ir), para a piscina, para o ginásio... Não entendo os problemas informáticos nem a negação da necessidade de um processo único e integrado de cada doente — um processo que o acompanha durante o seu percurso de vida. Entendo menos ainda a demora nos concursos médicos, a escassez dos concursos de enfermagem, a falta de carreiras dos secretários clínicos…

Durante a manifestação em Lisboa lembrei-me da última vez em que estive na Avenida João Crisóstomo. Foi em 2012. Lutávamos, na altura, contra a degradação do Serviço Nacional de Saúde, da qualidade do exercício técnico da medicina e da formação médica. Lutávamos contra a degradação das condições de trabalho e de exercício profissional, que afasta os mais experientes e capazes, que dificulta a formação pré e pós-graduada, e que desqualifica a investigação, contribuindo para uma diminuição da qualidade. Lutávamos contra as constantes dificuldades e injustiças remuneratórias que se colocam aos médicos, mesmo para entrada nos serviços públicos, obrigando-os a serem sensíveis a apelos privados, a mudanças irreversíveis de área profissional ou à opção pela emigração para países onde o seu trabalho, a sua carreira e a sua valia são melhor reconhecidos.

Lutávamos contra a manutenção de um sistema remuneratório assente em baixos salários base e na realização obrigatória de horas extraordinárias. Pedíamos uma grelha salarial que respeitasse a diferenciação técnica e profissional dos trabalhadores médicos, a sua intransmissível responsabilidade e que respeitasse a sua devida colocação na tabela remuneratória. Lutávamos contra as cotas para a criação das USF modelo B e contra o incumprimento do pagamento dos incentivos justamente merecidos. Lutávamos para que os estudantes de medicina não fossem encarados unicamente como futura mão-de-obra barata, negligenciando a sua formação e oportunidade para ajudar o país a desenvolver-se.

O que mudou, entretanto? Pouco... Muito pouco! Passados 11 anos lutamos praticamente pelo mesmo. Nem os três anos de uma pandemia, que levou ao limite todos os recursos humanos do SNS e que teve uma resposta exemplar dos profissionais, trouxeram reconhecimento!

Em 2012 ainda era médico interno de especialidade. Acreditava piamente que era impossível, depois de uma manifestação daquelas, não haver uma mudança de paradigma das políticas de saúde. Seria possível quem nos governa não querer ouvir quem está no terreno e não tentar fazer tudo por tudo para satisfazer as suas necessidades básicas? Falava na altura com colegas mais velhos, que me diziam que ia ficar tudo na mesma. Eu não acreditava. Este ano já não vi muitos desses colegas...

Se por um lado fiquei satisfeito com a juventude dos manifestantes, que começa cedo a perceber as dificuldades sentidas, por outro lado senti que fizeram falta os colegas mais velhos. Procurei razões para as ausências: uns já se reformaram, outros desistiram e estão no sector privado cansados das injustiças vividas, outros renderam-se ao descrédito nas políticas de saúde lentas, sem grande impacto quer na melhoria das condições de trabalho dos seus profissionais, quer mesmo na melhoria da prestação de cuidados de saúde. Fazem falta. Não só nas manifestações, mas, acima de tudo, nos serviços! Garantiam qualidade, formavam os mais novos e na discussão de casos clínicos reforçavam a segurança que nós precisamos para a tomada de decisões.

Recentemente um antigo ministro da Saúde confessou-me que acreditava que o actual ministro e o director executivo do SNS eram a última oportunidade para o salvar. Esta salvação já deveria ter dados sinais de vida… Mas eu ainda acredito na reabilitação completa.

Senhor ministro da Saúde e senhor director executivo do SNS, as palavras não são minhas, mas uso-as emprestadas de um colega. Peço-vos encarecidamente: cuidem do SNS e dos seus profissionais. Nós cuidamos dos nossos utentes/doentes com o melhor que temos e sabemos!

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