Baixas de curta duração: uma importante reforma estrutural

Só no ano passado, foram mais de 700 mil os actos médicos nos centros de saúde exclusivamente relacionados com baixas até três dias, que agora serão convertidos em consultas abertas a outras pessoas.

O país debate com frequência – e bem – a necessidade de reformas estruturais que garantam o aprofundamento dos nossos padrões de desenvolvimento social e económico, a sustentabilidade financeira e a melhoria da eficiência dos serviços públicos.

Em regra, as designadas reformas apresentadas pelos partidos à direita correspondem a uma visão redutora de cortes e desestruturação social que, não raras vezes, acabam por traduzir-se em mais custos para o erário público e num pior serviço prestado aos cidadãos. De uma forma geral, essas "reformas" têm necessariamente de ser maximalistas e implicar dor na sua aplicação. Mas, não tem de ser assim.

Há alguns dias, a Assembleia da República aprovou a Agenda para o Trabalho Digno. Foram meses de trabalho num processo dialogado e participado que culminou num pacote que altera e introduz mais de 150 normas. Entre elas, inclui-se uma medida que corresponde a uma importante reforma estrutural, sem custos, que permitirá criar centenas de milhares de vagas para consultas em centros de saúde. Este impacto em termos absolutos existe mesmo sem variação da capacidade instalada (que, de qualquer forma, será incrementada graças ao contínuo investimento no SNS), resultando em ganhos de milhões de euros e numa enorme melhoria de resposta aos cidadãos que hoje não têm acesso a um médico num centro de saúde.

Esta realidade não se trata de nenhum milagre. Resulta de uma articulação sectorial entre as áreas da Saúde, do Trabalho e da Segurança Social, concretizando uma proposta apresentada pelo Grupo Parlamentar do PS para acabar com os atestados médicos para baixas de curta duração, isto é, até três dias. O período não é por acaso e resulta das disposições já existentes no Código do Trabalho, no conhecimento médico e no alinhamento com as melhoras práticas europeias nesta matéria.

Por um lado, baixas até três dias não são remuneradas, pelo que o atestado que é passado nos centros de saúde serve apenas para evitar faltas injustificadas e não para desincentivar eventuais abusos, já que tal decorre do não pagamento destes dias. As pessoas não têm remuneração e tal é a mais séria limitação ao absentismo.

Por outro lado, facilmente percebemos que, ocasionalmente, todos temos de ficar em casa por motivo de doença, mas sem necessidade de ir a um médico, como por exemplo quando existe uma gripe ou pequena febre. Uma ida a um centro de saúde nestes casos (entre outros), obrigando a uma indesejada saída de casa sem possibilidade de pré-marcação, não resolve nenhum problema. A deslocação é forçada pela justificação da falta ao trabalho. Em termos estritamente médicos, o contacto e o acompanhamento através da linha SNS24, mais do que adequado, é aí recomendado. Naturalmente que se os sintomas de doença persistirem após três dias, impõe-se a ida a um médico. E, obviamente, nada impede que esse contacto seja feito antes, quando necessário: o trabalhador é que se liberta dessa obrigação.

Só no ano passado, foram mais de 700 mil os actos médicos nos centros de saúde exclusivamente relacionados com baixas até três dias, que agora serão convertidos em consultas abertas a outras pessoas. Incontáveis horas de trabalho burocrático, de que os médicos de medicina familiar se queixam (e com inteira razão), que podem e devem ser libertadas para cuidados médicos, para garantir mais vagas nos centros de saúde e para alargar o número de cidadãos abrangidos pelos médicos de família que já existem, independentemente dos que estão a ser formados e contratados.

Com a nova legislação, os trabalhadores passam a fazer uma auto-declaração de doença, sob compromisso de honra, através do SNS24, prioritariamente por via digital e em caso de dúvidas pela linha telefónica. Podem fazê-lo no máximo duas vezes por ano. Também não é obrigatório que usufruam de três dias seguidos. Podem ser menos: um ou dois. A aplicação desta medida será monitorizada atentamente em todas as suas dimensões e, em termos práticos, não será muito diferente da auto-emissão dos certificados covid através do serviço digital do Serviço Nacional de Saúde.

De uma só penada, com equilíbrio e ponderação, esta lei facilita a vida das pessoas, desmaterializa a relação com o SNS, desburocratiza o sistema, liberta os médicos para mais actos médicos e reforça a oferta do SNS.

Há melhor exemplo do que pode ser uma reforma estrutural?

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