Água engarrafada não é mais segura que a da torneira, diz relatório da ONU

Indústria da água não pára de crescer, gerando 25 milhões de toneladas de plástico e degradando recursos naturais em países onde há pouca, ou nenhuma, regulação, refere relatório das Nações Unidas.

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O relatório diz que a indústria da água se tornou um sector económico pujante em apenas cinco décadas Hans/DR

A ideia de que “a água engarrafada é mais segura do que a da torneira precisa de ser questionada”, alerta um relatório das Nações Unidas (ONU) divulgado nesta quinta-feira. Este sector económico —​ um dos mais dinâmicos do mundo, que cresce mais rápido do qualquer outro da indústria alimentar — envolve a venda anual de 350 mil milhões de litros de água tratada, que gera 25 milhões de toneladas de resíduos plásticos.

Ficamos surpresos com a quantidade de estudos que mostram a contaminação da água engarrafada, inclusive biológica, e principalmente com bactérias. Isso foi marcante e quebra a imagem de ‘água pura e saudável’, pela qual os consumidores pagam um preço alto. Embora essas contaminações sejam geralmente casos isolados, isso mostra que, na verdade, é a mesma tendência da água da torneira — onde, quando a contaminação acontece, também é esporádica”, afirma ao PÚBLICO Zeineb Bouhlel, co-autora do relatório e investigadora do Instituto para a Água, Ambiente e Saúde (INWEH, na sigla em inglês), na Universidade das Nações Unidas, com sede no Canadá.

O relatório do INWEH mostra que estão documentados vários casos de contaminação (orgânica, inorgânica ou microbiológica), ao longo das últimas cinco décadas, em centenas de marcas de água engarrafada. A revisão de cerca de 60 estudos de caso, oriundos de mais de 40 países, oferece-nos múltiplos exemplos em que a alegação de pureza e segurança é posta em causa.

“As empresas de bebidas são adeptas de propagandear a água engarrafada como uma ‘alternativa segura’ à água da torneira, invocando falhas isoladas do abastecimento público de água. Ao mesmo tempo, a água engarrafada raramente enfrenta as mesmas regras rigorosas em termos de saúde pública e ambiental. Os dados científicos que fundamentam as alegações de pureza e segurança são limitados”, refere o relatório do INWEH, um dos “braços” académicos das Nações Unidas.

Portugal está representado em pelo menos três estudos, dois referentes a um surto de cólera nos anos 1970 e outro relativo a bactérias resistentes a antibióticos, com data de 2012. Há ainda relatórios ou estudos globais, como um divulgado em 2019 pela Organização Mundial da Saúde sobre a presença dos microplásticos na água.

“Esta revisão constitui uma forte prova contra a percepção errónea de que a bebida engarrafada é uma fonte inquestionavelmente segura de água potável. E indica claramente que a qualidade do produto pode estar comprometida tanto pela origem da água como pelos processos industriais que podem potencialmente ter um impacte na saúde humana”, referem os autores na conclusão do relatório.

Era dourada da indústria da água

O trabalho refere ainda que a indústria da água se tornou, por si só, um sector económico pujante em apenas cinco décadas. Uma análise de dados referentes a 109 países mostra que este negócio global vale hoje cerca de 252 mil milhões de euros. E só tende a crescer: estima-se que duplique no período entre 2025 e 2030, ascendendo a mais de 466 mil milhões de euros.

Considerando que estamos a falar do comércio de algo vital para os humanos, o relatório da ONU sublinha que o vertiginoso crescimento da indústria da água confirma não só a importância de regular o sector, mas também a existência de desigualdades globais. Se no hemisfério Norte a bebida engarrafada é vista muitas vezes como uma opção mais saborosa, ou saudável, do que a água da torneira, no Sul o consumo do produto é impulsionado sobretudo pela falta de um abastecimento público confiável. Por outras palavras, o que é um luxo num sítio pode ser uma necessidade noutro.

Outro aspecto sublinhado no documento é a pressão que a indústria da água está a exercer sobre recursos locais de países onde, muitas vezes, há pouca ou nenhuma regulação relativa à exploração de reservatórios naturais de água.

“Algumas empresas privadas aproveitam-se de um bem público a baixo custo, tratam-no e vendem-no de volta para aqueles que podem pagar. Ironicamente, muitos casos nos 40 países mostram que o produto nem sempre é seguro”, lê-se na nota de imprensa.

A região da Ásia-Pacífico lidera tanto as vendas quanto o consumo de água engarrafada no mundo, seguida dos Estados Unidos e da Europa. Um dos gráficos disponibilizados no documento mostra o consumo per capita do produto em 50 países em 2021. Singapura está no topo (1129 litros por habitante), seguida da Austrália e de Malta. Alemanha, que constitui o maior mercado europeu, tanto no consumo quanto nas vendas, surge em décimo lugar. Portugal aparece na 35.ª posição.

Portugal está entre os 50 países que mais consomem em volume (cerca de 660 milhões de litros consumidos em 2021 (44.º lugar) e 64 litros por habitante (35.º lugar per capita), embora não esteja entre os maiores mercados em termos de valor. Não fizemos uma análise aprofundada país a país, mas os portugueses parecem ter, segundo a literatura existente, uma boa consciência no que diz respeito à reciclagem de resíduos de plástico”, afirma a investigadora Zeineb Bouhlel numa resposta enviada por email.

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A utilização anual de 600 mil milhões de garrafas gera um volume de resíduos capaz de encher sucessivos camiões numa fila imaginária de Nova Iorque a Banguecoque Hans/DR

Produção de resíduos plásticos

Esta era dourada da água engarrafada está, segundo o relatório, a mascarar um problema mundial: a incapacidade de muitos sistemas públicos de abastecimento em fornecer a todos água potável e segura. Falhar na oferta universal de água potável significa, provavelmente, não alcançar até 2030 a sexta meta dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU. Além de falhar outras metas que tocam a esfera ambiental.

A utilização anual de cerca de 600 mil milhões de garrafas (ou outros recipientes plásticos) gera um volume absurdo de resíduos, capaz de encher sucessivos camiões numa fila imaginária de Nova Iorque a Banguecoque. A maioria desse lixo não é reciclada, sublinha o documento, acabando por ir parar a aterros sanitários ou a lixeiras clandestinas.

“Pode-se argumentar que, se o mundo concentrar mais esforços no fornecimento público de água canalizada limpa e segura, a produção de água engarrafada pode ser reduzida, o que, por sua vez, levará à redução de resíduos de plástico. É importante lidar com a origem do problema e não com as consequências”, recomenda o relatório das Nações Unidas.

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