O que aconteceu à “reparação histórica mais progressista” da Europa?

A nova regulamentação da “lei dos sefarditas” reforça o preconceito de que todos os requerentes são corruptos e oportunistas.

Em 18 de fevereiro de 2023, foi publicado o artigo de opinião de Ricardo Gaio Alves, presidente da Associação República e Laicidade, intitulado A "lei dos sefarditas": um erro histórico. Com suposições falsas sobre um grupo que não representa, tenta definir a motivação de mais de 140.000 judeus sefarditas e seus descendentes que solicitaram a cidadania portuguesa desde 2015. Exige o fim dessa lei e ignora que foi pensada para o grupo étnico perseguido, e não para o religioso.

A nova regulamentação da lei exige herança em Portugal ou várias viagens ao longo da vida. Mas como pode haver herança, se os bens foram tomados há mais de 500 anos e a Inquisição durou até o século XIX? Já as viagens e os laços culturais com Portugal atual viriam com o tempo. Oito anos é pouco tempo para isso.

A nova regulamentação reforça o preconceito de que todos os requerentes são corruptos e oportunistas. E não remedia as reais questões: a falta de transparência na análise para os requerentes e a sociedade portuguesa; a falta de regras de controle bem definidas para análise documental, que clara e publicamente tornariam os abusos extremamente difíceis; a falta de estrutura digital e de mão-de-obra para esse tipo de análise, que são caras demais para as comunidades; e a insegurança jurídica dos requerentes e seus filhos.

Uma solução seria uma instituição vinculada diretamente ao Instituto de Registos e Notariado, com processo digitalizado e integrado, com participação das comunidades sefarditas de Portugal e servidores do Estado, para cuidar de genealogia e afins, com transparência e escrutínio, a fim de aumentar a confiança no processo.

Também apoiamos o projeto de lei do deputado Rui Tavares, para racionalizar a regulamentação de forma transparente e justa – devemos isso à diáspora sefardita, assim como a nós mesmos

Ao trazer de volta os judeus de origem portuguesa que fugiram para outros países, e também ao fazer a reparação para descendentes dos cristãos-novos, obrigados a fugir para colônias e a perder sua cultura judaica por conta de perseguição, a lei de nacionalidade promoveu uma explosão de investigação histórica em ambos os lados, que desconheciam a história um do outro. É enorme o impacto nos conhecimentos e ensino de história tanto no Brasil quanto nas comunidades sefarditas, e esperamos que também em Portugal.

Contudo, a queda do número de judeus em Portugal reforça a necessidade de restabelecer confiança dos sefarditas, quebrada pela nova regulamentação. Também é necessário um ecossistema adequado para a vida judaica, como restaurantes e mercados casher, além de instituições de ensino e afins. A sua falta afasta muitos judeus de Portugal.

É intolerável que nossa lealdade ao nosso país seja questionada para além da de qualquer outro cidadão. Somos portugueses – ponto final. E não cidadãos de segunda classe de uma nação que amamos o suficiente para lançar aí o nosso futuro e destinos comuns. É intolerável exigir que um segmento da sociedade demonstre contínua e publicamente a sua lealdade ao Estado devido à sua identidade étnica ou religiosa ou à circunstância de a sua cidadania ter precedentes terríveis, que remontam aos períodos mais negros do passado da Europa. E os judeus não estão sozinhos nisso. Esta tática é frequentemente empregada em todo o mundo para segregar novos cidadãos das maiorias.

Ian Pomerantz vem da comunidade de origem ibérica refugiada nos Balcãs, que emigrou para os Estados Unidos. Estuda português há muitos anos, antes da aprovação da lei, assim como a liturgia portuguesa para ajudar a comunidade judaica portuguesa mais ampla. Leandro da Mota é descendente direto de Branca Dias, a judia mais perseguida pela Inquisição Portuguesa no Brasil. Está a criar a associação Levantar, para promover o intercâmbio entre as comunidades portuguesa e sefardita, defender direitos dos judeus portugueses e promover o ecossistema judaico em Portugal. Buscamos a reconecção com a ancestralidade e a união das duas culturas. Somos atuantes cultural, social e politicamente em Portugal, assim como nas comunidades internacionais.

Não somos pobres migrantes turcos ou brasileiros que buscam explorar os serviços sociais europeus, como acusa o sr. Alves. Tampouco somos “oligarcas” ou “oportunistas” israelenses. Somos pessoas de clara origem ibérica judaica. Buscamos restaurar nossa comunidade e participar da vida cívica portuguesa, a retribuir a lei que nos foi concedida de bom grado pelo povo português. Onde o sr. Alves enxerga benefício para uma religião, enxergamos o resgate de uma cultura portuguesa histórica, única e vibrante, mas hoje em vias de extinção étnica e cultural.

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