A importância de se sentir “enervado”

Ser enervado — isto é, possuir nervos ou feixes de fibras nervosas — é uma premissa anatómica crucial à sobrevivência. Portanto, todos os seres humanos são enervados.

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O sentido pejorativo que atribuímos ao stress vem das situações extremas Ahtziri Lagarde/Unsplash

A língua portuguesa nas suas belas variações tem uma expressão maravilhosa, mas profundamente anticientífica, que é esta: “Eu fico enervado.”

Ora, ser enervado — isto é, possuir nervos ou feixes de fibras nervosas — é uma premissa anatómica crucial à sobrevivência. Portanto, todos os seres humanos são enervados, isto é, possuem nervos que captam os estímulos sensitivos — dor, temperatura, pressão — e contrapõem com, por exemplo, respostas motoras que controlam movimentos, como retirar a mão ou escapar de uma situação perigosa.

Portanto, o “estar enervado” não existe, uma vez que possuir nervos não é uma condição temporária. Felizmente.

O que existe é poder sentir-se ansioso, preocupado ou assustado. Estar ‘enervado’ é sinónimo de se sentir sob stress. O que por vezes passa despercebido é que a resposta ao stress é natural e fisiológica, que nos ajuda a lidar com situações desafiantes ou perigosas, essencial à sobrevivência e deve ser encarado como benéfico e importante (stress positivo). Senão vejamos:

1. É a condição que nos permite responder eficazmente ao perigo: quando nos deparamos com uma ameaça, seja ela física ou psicológica, a resposta do organismo ao stress entra em ação. Desencadeia a libertação de hormonas, tais como a adrenalina e cortisol, que nos ajudam a responder rápida e eficazmente. Estimulam o ritmo cardíaco, diminuem sensibilidade à dor, aumentam o aporte de oxigénio aos músculos.

2. O stress estimula o sistema imunitário: a libertação aguda de cortisol atua como imunossupressor e torna-nos mais resistentes a doenças e infeções. Não é surpreendente as pessoas ficarem doentes logo a seguir a um momento de extrema tensão ou de trabalho intenso, quando os níveis de cortisol descem.

3. Em termos mentais, motiva-nos a agir e a ser mais produtivos. A ativação de receptores sensíveis ao cortisol melhora o funcionamento neuronal e sinático, com impacto positivo na memória e atenção, levando-nos a ser mais focados. Daí o facto de a aproximação de um prazo nos torna mais eficazes e rápidos a agir.

O sentido pejorativo que atribuímos ao stress vem das situações extremas, quando há exposição a estes efeitos de forma continuada, sendo nessas situações prejudicial à saúde (stress negativo).

Em termos cerebrais, um aumento desajustado de cortisol causa atrofia dendrítica, ou seja, diminuição da densidade das ramificações nervosas, nomeadamente no hipocampo — região envolvida na aprendizagem e memória que tem uma sensibilidade particular, por possuir muitos recetores sensíveis ao cortisol.

Estes efeitos podem ser de tal modo extremos que, em soldados diagnosticados com transtorno de stress pós-traumático na Guerra do Golfo (1990-1991), se refletiu numa diminuição real do volume do hipocampo, visível em imagens de ressonância magnética estrutural. No entanto, após psicoterapia e medicação, esta atrofia do hipocampo desapareceu, bem como as queixas cognitivas associadas.

Estas observações constituíram as primeiras provas inequívocas da gravidade e do impacto da resposta ao stress na memória, em seres humanos. Por outro lado, estes dados mostraram-nos também que há formas de tratar estes efeitos e que atrofia dendrítica pode ser reversível, em muitos casos.

Vários estudos em animais mostraram que ausência de cuidado parental numa fase precoce da vida têm repercussões na resposta ao stress na idade adulta, nomeadamente baixando a tolerância a situações de stress adicionais e tendo impacto no desempenho cognitivo. Neste caso menos reversíveis do quem em adultos, mais ainda assim com margem de melhoria.

A exposição a stress continuado tem consequências na saúde física e mental, podendo estar associado a perturbações de ansiedade e depressão, bem como a alterações fisiológicas. Os níveis elevados de cortisol sistémicos estão associados a hipertensão, problemas digestivos e diabetes. O exercício físico e sono de qualidade são ótimos aliados no controlo dos níveis de cortisol e na diminuição destes riscos, sobretudo em profissões ou situações de vida ligadas a momentos de tensão permanentes.

Em conclusão, sentir stress é natural, e a resposta a este é uma capacidade fisiológica essencial à vida. Os níveis de cortisol flutuam naturalmente ao longo do dia e em situações agudas; aumentos ocasionais nos níveis de cortisol são normais. No entanto, a exposição a níveis elevados de cortisol de forma continuada altera não só a estrutura e função cerebrais, como também a vulnerabilidade a outras patologias.

Para espantar estes ‘nervos’ ocasionais, experimentem ler o maravilhoso O Jardim do Samurai, de Gail Tsukyama (versão em espanhol apenas) e a música Shake it Out dos Florence and the Machine.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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