Não quero condescendência, quero capacitação

A nossa Providência foi desenhada em torno do “homem-ganha-pão” e da “mulher-dona-de-casa”. E o facto de as creches estarem sob a alçada da Segurança Social, e não da Educação, não é um detalhe.

Hoje é o Dia Internacional da Mulher e, como habitualmente, surgem diversas reflexões; também surgem os equívocos clássicos nestas reflexões, como a confusão entre igualdade de oportunidades e de resultado, ou perante a constatação de que uma coisa é a lei, outra é a sua aplicação. Mas há uma questão que se mantém central: será que vivemos numa sociedade com sexismo estrutural? Parece-me importante acrescentar a esta discussão um novo ângulo: como é que a Segurança Social olha, em especial, para as mulheres e para as crianças?

A Segurança Social e o apoio à primeira infância, foram desenhados para servirem de suporte à mulher, ainda durante o Estado Novo, numa ótica de caridade; já em democracia, permanece como uma benesse que se dá às mulheres. O Estado Social foi desenhado, como dizem os especialistas, em torno da figura do “homem-ganha-pão” e da “mulher-dona-de-casa”. A nossa providência foi concebida pressupondo que as mulheres seriam trabalhadoras a tempo parcial ou sem vínculo laboral estável. Não se vê as creches como um direito das crianças, como uma fonte de desenvolvimento, como capacitação e direito à primeira infância, e não se reconhece a forte participação da mulher no mercado de trabalho.

Podemos verificar esta opção política estrutural olhando para o facto de as creches estarem sob a alçada da Segurança Social e não do Ministério da Educação, e sobre o que isso significa. Pode parecer um detalhe, mas é muito significativo porque vai à substância dos racionais políticos. Em concreto, esta orgânica revela que a preocupação perante a mulher é assistencialista, e de um racional de apoio, e não tem uma ótica de desenvolvimento da criança. É, ou deve ser, fundamental garantir que as crianças, sobretudo as mais desfavorecidas, chegam ao ensino obrigatório em igualdade de oportunidades. Para que aconteça essa mudança, podem contribuir argumentos de produtividade e de racional político, com base na importância dos direitos da primeira infância.

As creches deviam ter como foco prioritário o conforto e o desenvolvimento das crianças. Criar e garantir existência de ambientes felizes, de estímulos adequados e, tal como no pré-escolar, assegurar que as instalações e o acompanhamento são da mais elevada qualidade, de forma a criarem um contraste e a quebra de ciclo com o contexto de desfavorecimento e até de pobreza em que muitas das crianças vivem.

Um outro exemplo, de cariz prático, do que poderia significar a passagem das creches da tutela da Segurança Social para a da Educação, é pensar que as escolas primárias têm, fruto do “inverno demográfico” em que vivemos, poucas crianças. Não poderiam esses espaços mais vazios ser adaptados para receberem crianças mais pequenas, otimizando-se o parque escolar e alargando-se a rede de creches? Ademais, há escolas com ciclos em que a dupla tutela cria entraves burocráticos e dificuldades acrescidas - porque não fazer-se uma melhor integração?

A primeira infância deveria ser uma prioridade do sistema educativo. Como sociedade, devemos ser ambiciosos a este nível. A influência e o peso que os primeiros anos têm no desenvolvimento da personalidade, na potenciação do sucesso escolar e no desenvolvimento a diversos outros níveis é amplamente consensual. E, por isso, também a necessidade de se criar e garantir um contexto escolar que beneficie em especial as crianças socioeconomicamente mais desfavorecidas.

O assinalar de dias como este deveria servir para darmos alguns passos e avançarmos verdadeiramente na direção da mudança necessária, e não apenas para meras reflexões de circunstância.

As creches e a presença da Segurança Social como garantia de bem-estar e de coesão social são um tema estrutural, que vai muito para além do que se inscreve na lei, no qual as opções e exemplos políticos são relevantes. Estaremos prontos para debater questões de mudança como, por exemplo, as creches saírem da tutela da Segurança Social e integrarem o sistema de ensino, sob a alçada do Ministério da Educação? Estaremos prontos para discutir os direitos e a importância inequívoca da primeira infância? Estaremos prontos para readaptar as instituições e para promover outra visão sobre a criança e sobre o papel da mulher na sociedade?

No Dia Internacional da Mulher é essencial que nos lembremos de que é urgente atuar nos temas do papel das mulheres, dos direitos de primeira infância e das reais necessidades das crianças de meios desfavorecidos: mais condescendência não, capacitação!

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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