Infindável terramoto

Muito mal estiveram os nossos bispos! Conclui-se, pois, que se mantêm firmes no caminho para a irrelevância e autodestruição da Igreja, como vários teólogos vêm advertindo.

Perdoai-lhes, Senhor, porque não sabem o que fazem (Lc. 23.34).

Mas… e se souberem?

O que a estratégia me mandava fazer era construir uma prosa que apoiasse D. José Ornelas, que é, diz-se, quem se opõe aos sectores imobilistas do episcopado que insistem no caminho que nos trouxe a esta tragédia, e onde apenas vemos clericalismo e nenhum Jesus. Mas depois da catastrófica conferência de imprensa de dia 3, que tem sido tão severamente comentada por toda gente, não sei como o fazer. Sinto-me tristíssimo e só me lembro dos “vencidos do catolicismo”.

Logo na leitura inicial do comunicado pobremente escrito, a primeira impressão foi a de ausência de empatia com as vítimas, de uma vibração emocional, de um fio de comoção ou arrependimento: voz neutra e pose de funcionário que debita uma narrativa julgada conveniente para o momento (terramoto).

Dificuldades de comunicação? Sim, foi alarmante e penoso ver a dificuldade de verbalizar ideias, mesmo as mais simples, de articular frases inteiras ou de estabelecer uma linha de raciocínio (terramoto). Mas os verdadeiros problemas são outros: (a) o cultivo da cultura clerical dominante baseada no exercício do poder, fortemente ideologizada e conservadora, que impede a Igreja de entender os sinais dos tempos e de se relacionar com o mundo de modo crítico mas saudável; (b) vácuo de divino e de fé, substituídos por procedimentos e pela retenção de poder; (c) nulo estratégico que nada produz a não ser lugares-comuns que alguns bispos se sentem agora compelidos a referir, quais serviços mínimos; (d) cultura de denegação da etiologia e dimensão do problema e, portanto, a incapacidade de lidar com ele (tantos terramotos).

A cartilha seguida enformou toda a produção narrativa, que se refugiou sempre no formalismo da norma (canónica e civil). Ora, como muito bem disse Lisete Fradique do Nós Somos Igreja, antes de ser do direito, a questão é em primeiro lugar moral (terramoto). Como não o perceber?

Não se alcança a insensatez de não ter sido anunciada uma metodologia séria e um calendário para lidar com a lista dos abusadores no activo, tanto mais que não se trata de meros nomes mas de pessoas identificadas nos arquivos eclesiais e nos trabalhos da Comissão Independente (CI) (terramoto). Ninguém preconiza uma purga estalinista mas também ninguém tolerará que tudo dependa de um longo processo de produção de prova material, logo em crimes por natureza praticados no isolamento e na obscuridade sobre pessoas vulneráveis, ou que indemnizações dependam de processos cíveis individuais (terramoto). Novo erro consistiu na decisão de dispersar o tratamento destes casos pelas dioceses: em vez de uma estratégia nacional com critérios transparentes e socialmente compreensíveis, abre-se porta ao arbítrio local, à fragmentação de olhares e de soluções (terramoto). Finalmente, quanto aos bispos encobridores, onde se exigia consciência e decência, assistimos, de novo, à autodefesa formalista (terramoto).

É demasiado grande o intervalo entre a intenção expressa por D. Ornelas de mudar a cultura e agir. Num esforço inglório, diz ele que se está perante compromissos, o que nada diz aos católicos e à sociedade em geral por ignorar o essencial, "a vontade de enfrentar com seriedade e determinação a razão principal dos abusos: o clericalismo e o que ele significa de poder sem controlo, de impunidade sem limites" (7Margens, editorial de 4 de Março). Ao falhar aqui, falhar-se-á na prevenção dos abusos (terramoto).

A anunciada comissão com independência (e não uma comissão independente, a semântica importa) foi criada com o pecado original de ser uma espécie de secção da comissão nacional da Igreja que coordena a actividade das comissões diocesanas de protecção das crianças e jovens (CD). Logo, ao invés do referido, não segue o modelo da extinta CI, não é efectivamente independente, e não poderá dar seguimento ao seu trabalho, pelo menos nos mesmos termos (terramoto). Note-se ainda o absurdo e incorrecção de as CD assumirem funções de acompanhamento das vítimas, por pertencerem à mesma estrutura de onde o abusador é originário (terramoto).

Os restantes temas anunciados surgem avulsos, desintegrados de uma estratégia, vagos, imprecisos e confusos, sendo remetidos para o futuro (terramoto). E, no entanto, tudo poderia ser bem diferente: os bispos dispuseram de tempo de reflexão e possuíam as recomendações da CI. Também beneficiaram do contributo de católicos empenhados que, numa carta sensata, moderada e prudente, lhes sugeriram uma estratégia e acções concretas, o que foi ignorado. Quererão os bispos dialogar com os crentes ou cuidadosamente evitá-los? (terramoto).

Muito mal estiveram os nossos bispos! Conclui-se, pois, que se mantêm firmes no caminho para a irrelevância e autodestruição da Igreja, como vários teólogos vêm advertindo.

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