A Igreja esqueceu-se novamente das vítimas

A Igreja ou está com as vítimas ou não. Ao ouvir D. José Ornelas, é natural que as vítimas se questionem acerca de terem dado o seu testemunho. Terá valido a pena remexer num passado doloroso?

O comunicado de ontem da Igreja não surpreendeu, mas ao mesmo tempo desiludiu uma vez mais. A preocupação com o bem-estar das vítimas não esteve presente no discurso de D. José Ornelas. Igualmente grave, do meu ponto de vista, é o tom de descrença relativamente aos testemunhos e denúncias das vítimas. O presidente da Comissão Episcopal Portuguesa (CEP) deixou claro que não podem suspender um padre só porque foi feita uma queixa de abuso sexual. Avançou ainda que é preciso conhecer quem denuncia, as circunstâncias e uma série de outros aspectos.

Sobre as queixas, D. José Ornelas ancorou-se no mito das falsas denúncias para justificar a inação da Igreja relativamente à suspensão de alegados abusadores. Desmistifiquemos, desde já, a crença das falsas denúncias: apenas 3% ou 4% são falsas. São números residuais. A realidade é que é um risco para as vítimas denunciarem um abusador.

É comum que as vítimas sejam escrutinadas por terem denunciado e questionadas pelas suas ações (por exemplo, "Porque não falou antes?", "Porquê só agora?", etc.), enquanto o abusador fica fora deste questionamento. Aqui, o discurso e as ações da Igreja são contraditórias. Se, por um lado, através da Comissão Independente, a Igreja pediu que as vítimas quebrassem o silêncio e falassem das suas histórias de abuso sexual — e é importante ter em mente que foram eventos traumáticos cujas descrições dantescas pudemos assistir na apresentação pública do relatório final —, por outro desvaloriza completamente os testemunhos e as denúncias realizadas.

É uma postura no mínimo dissonante, e nesta altura, não pode haver espaço para ambiguidades. A Igreja ou está com as vítimas ou não está. Ao assistir a este discurso, é natural que as vítimas se questionem acerca de terem dado o seu testemunho. Terá valido a pena remexer num passado doloroso?

Que apoio psicológico podemos esperar?

As medidas divulgadas pela CEP não foram claras. Não foram apresentadas propostas reais, concretas, com objetivos claros e uma calendarização dos mesmos. O apoio psicológico é um exemplo disso, uma vez que não foi concretizado nenhum aspecto sobre a sua operacionalização.

Os abusos sexuais têm uma dimensão sistémica, e o silenciamento dos casos e a proteção dos abusadores foi estrutural. As medidas e respostas têm de romper com a cultura de autoproteção que a Igreja demonstra. Neste sentido, era esperado que fossem apresentados objetivos claros. Quanto mais tempo precisará a Igreja para avançar com um plano detalhado e calendarizado?

Em janeiro de 2022 foram recebidos os primeiros testemunhos. Quanto mais tempo vão estas vítimas ter de esperar para terem o apoio psicológico que merecem e precisam? Remexer em memórias traumáticas pode ser uma experiência altamente dolorosa que pode levar à retraumatização. Desde o início que questionei este ponto: se uma vítima, após ter dado o seu testemunho, entrasse em crise e tivesse ideação suicida, de quem seria a responsabilidade? A quem é que esta vítima poderia pedir apoio, uma vez que não era este o objetivo da comissão? Que responsabilidade tem a Igreja face às vítimas que viram intensificado o sofrimento causado pelo abuso e que não tinham a quem pedir ajuda?

D. José Ornelas falou vagamente sobre a criação de apoio psicológico, mas não basta criar um apoio qualquer. O acompanhamento psicológico de sobreviventes de violência sexual tem de ser altamente especializado em abuso sexual e trauma. Este apoio tinha que ter sido salvaguardado logo no início da Comissão Independente, mas ainda nem há uma proposta clara de quando será disponibilizado ou quem fará este acompanhamento. Mais uma vez, o bem-estar das vítimas continua a ser remetido para segundo plano.

A conferência da Conferência Episcopal Portuguesa foi outra oportunidade perdida para a Igreja reforçar que está com as vítimas, e que está a trabalhar verdadeiramente para a reparação dos danos causados pelos abusos sexuais que ocorreram na sua instituição. Parece que a Igreja chegou ao limite do seu entendimento sobre estas matérias, e isto é verdadeiramente preocupante.

Se qualquer outra entidade, como uma organização desportiva ou uma instituição particular de solidariedade social, replicasse o mesmo discurso e posição de autopreservação, não seria aceitável. Por que razão é permitida esta liberdade à Igreja?

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