Mar levou um pedaço do cordão dunar da Reserva Ornitológica do Mindelo
O mau tempo e a força do mar fizeram desaparecer uma porção das dunas. O Fapas teme as consequências para a reserva e a repetição de incidentes similares e de maior dimensão, se algo não for feito.
São muitos os peregrinos a caminho de Santiago de Compostela, em Espanha, a cruzar o passadiço que começa junto à praia do Mindelo, em Vila do Conde, e prossegue ao longo da Reserva Ornitológica do Mindelo (ROM), a primeira área protegida do país. Levam mochilas, em alguns casos, bastões, e calcam as estruturas de madeira até que os pés, em várias áreas, se afundam na areia que cobre o passadiço. Depois, este desaparece. À sua frente há um enorme buraco, parte do passadiço foi arrastada, o solo da reserva está coberto de sulcos fundos e o mar alto do Inverno aproxima-se. Aqui, o cordão dunar que acompanha o trajecto desapareceu, levado pela fúria das tempestades e do mar. E tarda em ser reparado, o que levanta receios sobre o futuro da reserva.
Classificada como Paisagem Protegida Regional do Litoral de Vila do Conde e Reserva Ornitológica de Mindelo (ROM) desde 2009, a parte da reserva foi fundada muito antes, em 1957, e desde então nunca esteve livre dos muitos problemas com os quais tem sido preciso lidar, com a pressão urbanística no topo das ameaças.
Décadas de extracção de areias, uma prática há muito afastada, também fragilizaram o seu cordão dunar, e o desvio de águas pluviais para o solo da reserva gera acumulação nos terrenos e, por vezes, a formação de pequenas lagoas. No núcleo do Mindelo do Fundo para a Protecção dos Animais Selvagens (Fapas) teme-se que também isto esteja a pressionar as dunas, do interior, enquanto estas têm de resistir à força cada vez mais próxima do mar, do outro lado.
O receio de que o cordão dunar pudesse não resistir, sobretudo à força do mar, não é de hoje, pelo menos para o Fapas, que, garante o coordenador do núcleo do Mindelo, Vítor Gonçalves, anda a alertar para essa possibilidade “desde 2019”. “Começámos a fazer alertas, em particular à Câmara de Vila do Conde e à APA [Agência Portuguesa do Ambiente], e até hoje nada foi feito”, conta, junto à enorme falha que se abriu entre as dunas, na madrugada de 1 de Janeiro.
“[Víamos que] O mar avançava mais sobre a costa e todos os anos passava por baixo do passadiço, nesta zona, e isso não tinha que ver com as águas pluviais acumuladas, ele escavava e passava”, explica, justificando o porquê dos alertas.
Mas, desta vez, o mar não se limitou a escavar pequenas passagens, levou consigo a duna e parte do passadiço e, ao deixar este caminho aberto, permitiu que as águas pluviais que se haviam acumulado no solo da reserva corressem velozes ao seu encontro, arrastando areia e cobertura vegetal, e deixando para trás os enormes sulcos quase despidos que agora se vêem ali. “Nunca tinha acontecido algo semelhante”, garante Vítor Gonçalves.
A Câmara de Vila do Conde confirma. Em resposta escrita enviada ao PÚBLICO, indica que “é a primeira vez que tal acontece” e ressalva que “as causas terão de ser analisadas de forma científica e analítica pelas competentes autoridades”, mas admite que o acidente se deveu, “provavelmente, à subida das águas do mar em virtude de alterações climáticas”. E acrescenta que o desaparecimento de alguns metros de duna “ocorreu devido aos fortes temporais (chuvas e ventos extremamente fortes) sentidos em todo o litoral durante dias”, no final de 2022 e início de 2023, associados “à subida das sucessivas marés e à fortíssima ondulação” ali sentida.
Nesses mesmos dias de temporal, um pouco mais à frente, ao longo do passadiço, a ponte de madeira sobre a ribeira de Silvares também foi destruída pelas águas, mas aí a intervenção da autarquia foi rápida: a estrutura foi consertada dias depois.
Por isso, Vítor Gonçalves e os outros membros do Fapas que o acompanham na visita à reserva, nesta sexta-feira, têm ainda mais dificuldade em perceber por que não se procurou ainda repor o cordão dunar no local onde ele quebrou. “Era preciso consolidar a duna o mais rápido possível, sem estar à espera de possíveis alterações que se possam efectuar no passadiço ou de outra situação qualquer. Fechar este bocado e avançar rapidamente com o que é necessário e que o POOC [Plano de Ordenamento da Orla Costeira] prevê. Se calhar com medidas até mais eficazes, porque o POOC só prevê para a consolidação desta duna a colocação de areia ao largo e não me parece que seja o mais adequado neste momento”, diz o coordenador do Fapas do Mindelo.
Para o grupo, os riscos para a reserva, caso nada seja feito rapidamente, são claros. “A deslocação rápida das águas pluviais para o mar arrastou vegetação e areias e a entrada do mar, que continua a acontecer, acaba por erodir muito mais esta área, saliniza o terreno e prejudica as culturas a montante. A reserva tem muitas plantas autóctones e, infelizmente, algumas infestantes, mas nesta área em particular era tudo autóctone e graças à redução do pisoteio, por causa dos passadiços, estava-se a regenerar lentamente”, refere Vítor Gonçalves.
O Fapas avisa que numa área tão frágil como a ROM, a quebra do cordão dunar, ainda que numa curta extensão, pode tornar ainda mais complicada a sobrevivência da flora e da fauna que animam a paisagem. E temem que o futuro, sobretudo com as marés vivas do Verão, traga incidentes similares e de maior dimensão.
Mas, apesar de garantir que tomou conhecimento da quebra do cordão dunar assim que ele ocorreu e que “de imediato foi dado conhecimento à APA”, o município liderado pelo socialista Vítor Costa não aparenta estar demasiado ansioso com as eventuais consequências. “O rompimento dunar nesta pequena extensão, apesar de preocupante, não causa, para já, danos substanciais numa área protegida que tem uma extensão litoral de 8,5 quilómetros e uma área total de 380 hectares”, indica, na resposta enviada ao PÚBLICO.
Ainda assim, a câmara garante que dará o seu apoio à “intervenção necessária”, a qual, frisa, terá de ser “coordenada e supervisionada” pela APA. “Esta intervenção está incluída na lista proposta à CCDR-N [Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte] no âmbito do apoio do governo aos prejuízos e danos causados pelo mau tempo neste Inverno e que afectaram de sobremaneira os municípios do litoral Norte”, realça.
O PÚBLICO questionou a APA sobre a situação vivida na ROM, com a quebra do cordão dunar, mas não obteve resposta.