Na costa de Vila do Conde, a pé pela reserva natural mais antiga do país

O passadiço que une a orla costeira de todas as freguesias de Vila do Conde a sul do rio Ave estende-se por 8,5km. Entre Árvore e Mindelo caminhamos na reserva ornitológica, pelas dunas e pela floresta — e aproveitamos para fugir à procura de aves e anfíbios.

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Nelson Garrido

A leitora e o leitor vão-nos desculpar, mas no caminho desta semana vamos ter de nos desviar por um momento do passadiço, a estrutura que nos tem guiado confortavelmente ao longo deste Verão. Não é tanto um desvio o que propomos, já que o próprio passadiço de madeira que hoje lhe trazemos, assente em estacas sobre as dunas do litoral sul de Vila do Conde, abre ele mesmo passagem para os caminhos de areia que nos levam ao interior da Reserva Ornitológica do Mindelo (ROM), a mais antiga do país.

É como no poema de Robert Frost: chegados a Árvore, depois da ponte que atravessa a ribeira de Silvares, a estrada bifurcou-se num bosque amarelo (e azul e verde) e sendo nós um só viajante, tivemos de fazer uma escolha. Tomamos, pois, a estrada menos viajada, perpendicular ao trânsito domingueiro do passadiço — e isso fez toda a diferença. É que as cordas que limitam o caminho acabam por desaparecer, deixando-nos abandonados entre as dunas, que deixamos sem remorsos para trás, e o “mosaico de habitats” da reserva natural que se desdobra à nossa frente em três camadas.

Primeiro, os olhos prendem-se no chão, enquanto nos desviamos das espécies rasteiras que cobrem o sistema dunar e que, de tão únicas, só ocorrem nesta zona de Portugal. Avançamos e tentamos manter-nos atentos aos anfíbios, difíceis de apanhar durante o período seco. Aqui foram registadas 14 das 17 espécies presentes em Portugal, mas nem próximos dos riachos, alguns muito poluídos, tivemos a sorte de ver algum exemplar.

Subimos o olhar para os arbustos que abanam à mercê da maresia até se fixarem na última barreira, montada por carvalhos, pinheiros e alguns eucaliptos.

Em 2009, a ROM passou a fazer parte de uma nova área classificada como Paisagem Protegida Regional do Litoral de Vila do Conde e Reserva Ornitológica de Mindelo, que, segundo o Instituto de Conservação da Natureza, se estende por 380 hectares de “cordões dunares, rochedos, zonas húmidas, manchas florestais e áreas agrícolas” entre a foz do rio Ave e a do rio Onda. A classificação ajudou a travar novas ambições urbanísticas mas ainda há muito trabalho a fazer na reserva mais antiga do país, a começar nos caminhos que ligam a cidade à área protegida (por exemplo, a partir da estação de metro Espaço Natureza, mesmo à porta da reserva) e na falta de placas informativas. Não tivéssemos ao nosso lado um biólogo e não saberíamos sequer que estávamos a calcar área protegida.

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Nelson Garrido

Rui Brito guiou a “visita emocional” que assinalou o sexagésimo aniversário da ROM, no passado fim-de-semana, e homenageou o seu principal defensor desde os anos 1950, Santos Júnior, ornitólogo e professor catedrático da Universidade do Porto. Ainda hoje esta Universidade organiza sessões quinzenais de anilhagem de aves naquele local.

Pelo caminho tentamos ouvir interrupções no silêncio que se impõe quanto mais para trás deixamos o mar — e sim, o passadiço. O objectivo é ouvir algumas das mais de 100 espécies de aves que por lá já foram registadas.

Mais uma vez falhamos e não avistamos nenhuma garça-real, branca ou cinzenta, e nenhum borrelho, pintarroxo ou andorinha das chaminés, mesmo escalando os dois andares do primeiro observatório de aves da reserva, inaugurado aquando da visita.

O que vemos, sim, é o mar, bem lá ao fundo, a espreitar entre o vale das dunas e a seduzir-nos para o nosso caminho inicial. Acatamos o concelho, ajustamos as sapatilhas e voltamos a descer em direcção aos 8,5 quilómetros de passadiço ao longo de toda a área da Paisagem Protegida Regional do Litoral de Vila do Conde e Reserva Ornitológica de Mindelo. Para trás ficaram os quilómetros que ligam Azurara a Árvore, para a frente falta percorrer a orla costeira das freguesias de Mindelo, Vila Chã e Labruge, a fronteira com Matosinhos.

Pés ao caminho de volta ao passadiço, de dificuldade baixa, quase sempre plano, passamos por um breve troço do quilómetro e meio entre Árvore e Mindelo onde somos sugados pela natureza (afinal, estamos a caminhar na “única área costeira minimamente preservada entre a barrinha de Esmoriz e o litoral de Esposende”). Lembramo-nos do que o biólogo Rui Brito nos disse mais cedo, “o objectivo raramente deverá ser tirar o homem da paisagem, temos é que tentar encontrar o equilíbrio”. Durou um escasso minuto até recuperarmos essa harmonia, com dois ciclistas a aproximarem-se e a lembrarem-nos que não estamos sozinhos.

Nelson Garrido
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Nelson Garrido

Na próxima curva começam a insurgir-se as pequenas “casas de mar” e os restaurantes de peixe e marisco, quase em cima das barracas de praia que se estendem pelo areal. Ficávamos por lá e arriscávamos um mergulho, não estivesse o mar com ondas capazes de nos engolir inteiros de uma só vez. “Ficou bravo muito rápido, passa-se alguma coisa”, atira profeticamente um pescador em conversa com outro, sem nunca desviar os olhos da massa de água, como se desconfiasse de cada onda.

Viramos costas e deparamo-nos com uma Biblioteca de Praia (uma das três da cidade), montada numa casinha em pedra de onde sai uma rapariga, jovem, com a concha de vieira na mochila e a Bagagem do Viajante, de José Saramago, na mão.

É uma dos muitos peregrinos que percorrem o passadiço enquanto fazem o caminho até Santiago de Compostela, em sentido contrário ao nosso, deixando para trás Laderça, facilmente identificável olhando apenas para o mar, onde se impõe o penedo de Guilhade.

Nelson Garrido
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Nelson Garrido

Passamos por ele enquanto vamos encaminhados pelo passadiço até ao lugar do Facho, já em Vila Chã, onde antes se acenderiam fogueiras para ajudar à orientação à navegação dos homens do mar. Como não vamos para o mar não precisamos delas e em terra confiamos no passadiço para nos guiar até ao Largo da Lota, que há pouco tempo a Câmara recuperou, reabilitando os “tradicionais armazéns de aprestos dos pescadores”, no bairro onde agora se contam os pequenos barcos piscatórios usando apenas os dedos das mãos.

Mais para a frente ainda fica por ver o Castro de São Paio, um sítio arqueológico que é descrito como “o único exemplar nacional em que o mar toca as defesas”. Depois de subirmos as escadas deixamo-nos ficar por aí, no alto da falésia, a ver cair o sol. Poeticamente começamos, poeticamente acabamos, 28 quilómetros a norte do Porto, distraídos entre a praia e os campos agrícolas, na fronteira sul da terra que é do mar.

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