Navegar rumo a um futuro mais sustentável

É hora de desbloquear o potencial dos combustíveis renováveis na descarbonização do transporte marítimo.

Já não será novidade para a maioria de nós que o transporte marítimo é atualmente responsável por entre 80 e 90% do transporte de mercadorias de todo o mundo. Basta-nos pensar que quase todos os bens e, muitas vezes, alimentos que utilizamos e consumimos no nosso dia-a-dia fizeram, a dada altura, uma viagem de navio para percebermos a importância económica do sector. Exemplificativo disso mesmo é o facto de cerca de 77% de todos os bens importados e exportados pela União Europeia (UE) serem movimentados via transporte marítimo.

Infelizmente, esta importância económica vem acompanhada de impactos negativos, também eles significativos, já que a maior parte dos navios é movida a fuelóleo pesado, o combustível derivado do petróleo mais sujo que existe, gerando, na sua totalidade, 3% das emissões globais de gases com efeito de estufa (GEE). Não é um valor de se menosprezar, sobretudo se pensarmos que se o transporte marítimo internacional fosse um país, seria o sexto maior emissor de gases com efeito de estufa.

À medida que outros sectores se vão descarbonizando mais rapidamente, porque beneficiam de tecnologia já madura e economicamente competitiva para o fazerem, o transporte marítimo vai ficando cada vez mais para trás. Não nos esqueçamos de que, até agora, as emissões deste sector têm sido sistematicamente excluídas da legislação climática europeia e, em termos de regulação internacional, as medidas impostas pela Organização Marítima Internacional (IMO, na sigla inglesa) têm ficado muito aquém de alinhar a trajetória de descarbonização do transporte marítimo com os objetivos do Acordo de Paris.

A ciência mostra-nos que temos pela frente uma década crítica para a ação climática, e como os navios têm um tempo de vida útil de cerca de 20 a 30 anos, a descarbonização do sector do transporte marítimo tem de começar imediatamente, se queremos efetivamente reduzir a poluição associada aos navios e limitar o aumento da temperatura global a 1,5ºC até ao final do século.

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EPA/DAN PELED

A questão fundamental é: qual a melhor rota para descarbonizar o transporte marítimo?

A verdade é que não existe uma só solução, nem um só caminho. Deveria ser claro que a discussão tem necessariamente que começar pelo respeito dos limites planetários e, sobretudo, por uma reflexão mais profunda sobre os nossos hábitos de consumo e sobre o comércio global.

Ainda assim, e porque uma discussão como essa ainda não faz parte do imaginário coletivo, é crucial entender o que é possível fazer já para garantir a sustentabilidade do transporte marítimo no longo prazo. Para além de o próprio desenho e da velocidade dos navios permitir já reduzir consumos, e, consequentemente, emissões, são necessárias medidas estruturais. E, neste âmbito, a União Europeia deu (finalmente) alguns passos na direção certa, ao incluir o transporte marítimo no comércio europeu de licenças de emissão e ao propor, pela primeira vez, um regulamento relativo à utilização de combustíveis renováveis e hipocarbónicos no sector (FuelEU Maritime).

O potencial dos combustíveis renováveis de origem não biológica

Uma das principais propostas de negociação no quadro do FuelEU Maritime vem do Parlamento Europeu e pressupõe o estabelecimento de uma subquota de 2% para combustíveis renováveis de origem não biológica (RFNBO, na sigla inglesa) até 2030. Na prática, isto significa a canalização de cerca de 215 mil toneladas de hidrogénio verde para o transporte marítimo até 2030, um valor quase simbólico quando comparado com os 20 milhões de toneladas para todas as utilizações previstas no Plano RePowerEU (10 milhões de toneladas provenientes de produção interna e 10 milhões de toneladas oriundas de importação).

Para Portugal, uma subquota de 2% traduz-se em cerca de 3700 toneladas de hidrogénio até 2030 especificamente para o transporte marítimo, ou 20,6 mil toneladas de amoníaco verde e 19,5 mil toneladas de metanol verde para navios que atraquem em Portugal.

Se, à primeira vista, estes valores podem parecer elevados para a realidade portuguesa, sobretudo em termos de capacidade de produção de hidrogénio verde que, como sabemos, tem sido apresentado como a solução-chave para a descarbonização de vários (demasiados?) sectores (para não falar nos sonhos de exportação), a verdade é que uma subquota de 2% para RFNBO apresenta uma oportunidade para Portugal se posicionar na liderança da descarbonização de um dos sectores que mais dificilmente se poderão eletrificar.

É preciso pensar mais além e garantir que a capacidade instalada de hidrogénio verde para 2030 em Portugal, que pode chegar a atingir valores acima das 400 mil toneladas, seja canalizada tanto para a produção de combustíveis renováveis para descarbonizar a própria frota nacional de navios como para garantir que o Porto de Sines se desenvolva como um dos mais importantes pontos de abastecimento de combustíveis renováveis da Europa, por exemplo.

A beleza de uma subquota específica para combustíveis renováveis de origem não biológica reside no facto de ser tecnologicamente neutra, ou seja, os armadores não ficam restringidos a utilizar apenas hidrogénio ou amoníaco verdes, podendo optar por outros combustíveis sintéticos, como sejam o metanol verde ou o e-diesel. No fundo, é um sinal absolutamente crucial para o sector investir em combustíveis que, em última análise, serão os mais sustentáveis e escaláveis para o transporte marítimo, reduzindo as incertezas ao longo da cadeia de abastecimento.

Para Portugal, trata-se, para além disso, de concretizar as metas recentemente estabelecidas pelo Decreto-lei n.º 84/2022, que, entre outros, mandata a incorporação de 9% de energias renováveis no consumo final de energia no transporte marítimo a partir de 2029. Não fará então sentido estimular também o lado da procura para garantir um mercado estável para os combustíveis renováveis que forem sendo produzidos até 2030?

A verdade é que a descarbonização do sector terá que passar, em larga medida, por uma mudança nos combustíveis utilizados. Como tal, chegou a hora de Portugal apostar em alternativas verdadeiramente limpas e distanciar-se dos combustíveis fósseis – e, sim, o gás natural liquefeito é um combustível fóssil que não pode ser visto nem admitido como a solução –, apoiando efetivamente legislação robusta que permita navegar rumo a um futuro mais sustentável no transporte marítimo.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico.

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